Comentário ao
Acórdão
Acórdão Do Supremo Tribunal
Administrativo, Processo: 046594, Data do Acórdão: 30-01-2002, Relator: Jorge
de Sousa.
Cumpre fazer
uma análise comentada ao acórdão supra
mencionado, sumariamente, estamos presente uma expropriação de uma parcela de
70m2 de terreno, incluindo a demolição de um anexo de 20m2 em
função de uma construção de uma passagem numa estrada (E.N. 206, em Vila Nova
de Famalicão). Neste caso, foi o Secretário de Estado da Administração Local
que exercendo competência delegada, declarou através de ato administrativo,
utilidade pública ao terreno em causa.
Antes de mais,
o regime da expropriação está regulado, atualmente, no Código de Expropriação (CE, Lei n.º 56/2008, de 04/09). A expropriação dar-se-á após a
declaração de utilidade pública, devidamente fundamentada (art.10º) sendo que
poderá ser realizada mediante acordo (designado como expropriação amigável,
art. 33º ss CE) e se somente não for possível esse acordo, a título de exemplo,
por não serem objeto de acordo possível os tópicos mencionados no art. 34º,
haverá expropriação litigiosa (art. 38ºss CE).
Neste sentido posso evidenciar várias questões suscitadas no acórdão.
Em primeiro lugar, os recorrentes em causa (o proprietário do terreno, o
senhor B e cônjuge, a senhora A) invocam que a expropriação teria um fim de
interesse privado e beneficiaria um particular (centro comercial E.Leclerc),
porque se estaria perante uma obra privada, visto que o particular acordou com
a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão suportar os custos da passagem,
havendo assim um licenciamento. Alegavam assim que eram violados os preceitos
66º e 266º/1 CRP e os artigos 1º e 2º do CE. Porém, penso que neste caso a obra
serve o interesse público no sentido de permitir uma segurança nas deslocações
dos transeuntes par o centro urbano da cidade e simultaneamente permite uma
fluidez na circulação automóvel.
Posto isto, na
minha opinião, a expropriação cumpriria um interesse público, pelo que não
haveria lugar a desvio de poder, mais concretamente a um crime de corrupção por
parte do órgão da administração. Neste caso, de expropriação, estamos perante
um poder discricionário da administração, ou seja, um poder para o qual a Administração
tem uma opção de escolha sobre as várias decisões possíveis (o professor Vasco
Pereira da Silva faz uma distinção de três momentos discricionários, o da
interpretação, o da apreciação e o da decisão). Sabemos que a Administração está
sempre sujeita ao princípio da legalidade, desde logo ao princípio no seu
sentido mais alargado do termo, designado por alguns autores como um princípio
da juridicidade (art. 3º/1 CPA). Neste sentido, a Administração até no
exercício do seu poder discricionário tem vinculações à lei e ao direito e esse
poder pode ser sujeito a uma fiscalização por parte dos tribunais, até porque
independentemente dessa situação, já referia o prof. Freitas do Amaral que os atos
não são totalmente vinculados nem totalmente discricionários, sendo que o prof.
Vasco pereira da Silva vai mais longe ao afirmar que (não os atos) mas antes os
poderes da administração não são nem totalmente vinculados nem totalmente
discricionários. Tradicionalmente eram referidos como limitações ao poder discricionário
e consequentemente como atos vinculados a competência (que é sempre de ordem
pública) e o fim, sendo que atualmente também os princípios serão aspetos
vinculados, havendo violação destes há uma ilegalidade.
Neste caso o
que está em causa é um problema relativo ao fim, cada ato administrativo tem um
fim, e este especificamente (de expropriação) tem de ter um fim público. Neste
sentido, cumpre distinguir duas situações, as que se apresentam como sendo
menos graves, porque há um desvio de poder e a substituição de um interesse
público (prescrito pela lei) por outro interesse público, do qual se retira a
consequência de anulabilidade, das outras situações em que haverá para além de
um crime de corrução, uma situação grave do ponto de vista administrativo que
gera nulidade do ato (art. 161º/1 e) CPA), pois há a substituição de um fim
público por um privado (que é a situação alegada pelos recorrentes).
Para além
disso, é da competência da Administração, de acordo com o art. 266º/1 CRP
prosseguir o interesse público e os tribunais não têm de censurar essa
atividade ou definir o que é o interesse público, é à lei que compete tal
situação (princípio da separação de poderes) Sendo que na situação mencionada
no acórdão, tenho de concordar com a sentença proferida pois estamos perante,
sem sombra de dúvida, de um interesse público independentemente do que
reflexamente o centro comercial irá beneficiar com a passagem dos peões e de
uma possível subida de compras e tudo o que lhe está adjacente. O interesse privado não é forçosamente
incompatível com o interesse público. Não foram assim violados os
artigos os artigos 66º e 266º/1 da CRP e os artigos 1º e 2º do CE.
Em segundo
lugar, temos a questão suscitada pelos recorrentes de que a construção da
infraestrutura beneficiava um interesse privado, utilizando o argumento de que
a obra iria ser executada por um particular e não pela Câmara Municipal de Vila
Nova de Famalicão, sendo que era esta que detinha competência e atribuições para
tal (na altura da vigência da Lei nº159/99 art.18º/1 c) que atualmente se
encontra revogada pela Lei 75/2013 onde se encontra também competência do
Município para tal, havendo equiparação com o art. 23º/1 c)). Cumpre
clarificar, desde já, que o interesse público pode ser prosseguido tanto pelos
órgãos da administração como por entidades privadas, sendo que não é retirado o
carácter de “público” ao interesse em causa. Desde logo isso é possível, a
título de exemplo, através de uma concessão que pode revestir a pele de ato
administrativo (ou de contrato) mas enquanto ato seria primário e permissivo,
no sentido de possibilitar alguém a adotar/omitir uma conduta que de outro modo
lhe estaria vedada, a Administração atribuía assim uma vantagem, transferindo para
a entidade privada o exercício de uma atividade pública que esta irá
desempenhar por sua conta e risco atendendo sempre ao interesse geral, é o
chamado “exercício privado de funções públicas”.
Em terceiro
lugar, surge a questão do ato administrativo de expropriação ter sido praticado
pelo Secretário de Estado da Administração Local, no exercício de competência
delegada do Ministro Adjunto. Desde logo o ato administrativo em causa
classifica-se como um ato administrativo discricionário (já mencionado supra), primário (pois versa pela primeira vez sobre uma determinada
situação da vida), impositivo (pois neste caso determinada que os recorrentes
em causa se coloquem numa posição de sujeição e arquem com os efeitos jurídicos
em causa), ablativo (pois comporta a extinção ou compressão de um direito-
neste caso ao direito de propriedade sobre o terreno). Neste tipo de atos
administrativos há uma contrapartida
por parte da administração em compensar os particulares através de uma
indeminização pecuniária (art 62º/2 CRP) a qual tem de corresponder ao valor do
bem sacrificado, não podendo ser meramente simbólica e tem de ter carácter
reequilibrado (art 23º ss do CE) e previsto também no art. 10º/1 e nº4 CE. A
proposta do Município foi de 1 milhão e 50 mil escudos.
O que está em
causa nesta situação é os recorrentes alegarem que a declaração de utilidade
pública era apenas da competência do ministro de acordo com o art. 14º/1 do CE
e nesse sentido haveria uma renúncia da sua competência e o ato administrativo
em causa seria nulo. Ora, a delegação de poderes é um ato administrativo pelo
qual um órgão da administração que é competente para decidir sobre a matéria
(ministro adjunto) permite, de acordo com a lei, que outro órgão pratique atos
administrativos sobre a matéria (art. 44º ss CPA), é uma forma de
desconcentração derivada, pelo que cumpridos os requisitos de validade do art.
47º/1, os de eficácia 47º/2 CPA e havendo lei habilitante não haverá problemas.
Sendo que a alusão ao “ministro” no art. 14º/1 do CE não pretende tomar qualquer posição quanto à
questão da divisão de competências entre o Ministro e o Secretário de Estado
mas antes definir que é competente para a prática do ato em causa o órgão
superior. Neste sentido o artigo em causa (14º CE) não cria qualquer obstáculo
à delegação de poderes (tal como já proferido em sentença anterior, processo nº
44600), não havendo assim vícios do ato pois o despacho de delegação tem base legal, visto que os
secretários de Estado não detêm competência própria.
Em quarto
lugar, os recorrentes alegam falta de fundamentação da declaração de utilidade,
que é obrigatória nos casos de expropriação urgente (que é o caso), art.15º/2
CE e ainda previsto no art. 10º/1 CE. A fundamentação da declaração foi “Este local é o que melhor
se adequa aos fins em vista, nomeadamente devido à necessidade de preservar
todos os acessos existentes com o restaurante McDonnald’s e ao já referido
espaço comercial E.Leclerc, local de elevada circulação de peões. (…) não
obrigando os peões – que se deslocam do centro urbano em direção ao norte e
vice-versa – a percorrerem grandes distâncias para atravessar a EN 204 que, por
vezes, procedem ao seu atravessamento pondo em risco a sua segurança e da
circulação automóvel.” Deste modo, partilho da opinião de que houve uma
fundamentação percetível, cumprindo os requisitos necessários.
Em quinto lugar, foi alegado haver uma
divergência entre a parte do imóvel a expropriar e o imóvel que consta
na declaração de utilidade pública. Porém, retiro que essa divergência é apenas
uma mera irregularidade e que foi sanada através da ratificação do recorrente
(que neste caso deverá ter eficácia retroativa), não impedindo a compreensão
dos destinatários nem com a decisão objeto de expropriação.
Cumpre
ainda salientar que os municípios tinham competência para propor declarações de
utilidade pública para efeitos de expropriação, de acordo com a al.
c), do nº 7, do art. 64º, da Lei 169/99, de 18/09 que atualmente é
equiparada à lei revogatória 75/2013 de 12 de Setembro, art. 33º/1 vv). Uma
última nota que joga a favor da posição adotada, pois o que estará em jogo é o
prosseguir do interesse público e nesse sentido a obra irá recair sobre o
domínio do património do Município.
Concluindo,
sou da opinião de que a sentença proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo
foi a mais sensata, julgado improcedente a ação e indo de acordo com os limites
impostos à atuação da administração, desde logo o princípio da legalidade, o
princípio da proporcionalidade, boa-fé, igualdade.
Neuza
Carreira, Turma B, Subturma 14, nº 57098.
No comments:
Post a Comment