Sunday, April 8, 2018



Comentário ao Acórdão

Acórdão Do Supremo Tribunal Administrativo, Processo: 046594, Data do Acórdão: 30-01-2002, Relator: Jorge de Sousa.

Cumpre fazer uma análise comentada ao acórdão supra mencionado, sumariamente, estamos presente uma expropriação de uma parcela de 70m2 de terreno, incluindo a demolição de um anexo de 20m2 em função de uma construção de uma passagem numa estrada (E.N. 206, em Vila Nova de Famalicão). Neste caso, foi o Secretário de Estado da Administração Local que exercendo competência delegada, declarou através de ato administrativo, utilidade pública ao terreno em causa.

Antes de mais, o regime da expropriação está regulado, atualmente, no Código de Expropriação (CE, Lei n.º 56/2008, de 04/09). A expropriação dar-se-á após a declaração de utilidade pública, devidamente fundamentada (art.10º) sendo que poderá ser realizada mediante acordo (designado como expropriação amigável, art. 33º ss CE) e se somente não for possível esse acordo, a título de exemplo, por não serem objeto de acordo possível os tópicos mencionados no art. 34º, haverá expropriação litigiosa (art. 38ºss CE).

Neste sentido posso evidenciar várias questões suscitadas no acórdão. Em primeiro lugar, os recorrentes em causa (o proprietário do terreno, o senhor B e cônjuge, a senhora A) invocam que a expropriação teria um fim de interesse privado e beneficiaria um particular (centro comercial E.Leclerc), porque se estaria perante uma obra privada, visto que o particular acordou com a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão suportar os custos da passagem, havendo assim um licenciamento. Alegavam assim que eram violados os preceitos 66º e 266º/1 CRP e os artigos 1º e 2º do CE. Porém, penso que neste caso a obra serve o interesse público no sentido de permitir uma segurança nas deslocações dos transeuntes par o centro urbano da cidade e simultaneamente permite uma fluidez na circulação automóvel.

Posto isto, na minha opinião, a expropriação cumpriria um interesse público, pelo que não haveria lugar a desvio de poder, mais concretamente a um crime de corrupção por parte do órgão da administração. Neste caso, de expropriação, estamos perante um poder discricionário da administração, ou seja, um poder para o qual a Administração tem uma opção de escolha sobre as várias decisões possíveis (o professor Vasco Pereira da Silva faz uma distinção de três momentos discricionários, o da interpretação, o da apreciação e o da decisão). Sabemos que a Administração está sempre sujeita ao princípio da legalidade, desde logo ao princípio no seu sentido mais alargado do termo, designado por alguns autores como um princípio da juridicidade (art. 3º/1 CPA). Neste sentido, a Administração até no exercício do seu poder discricionário tem vinculações à lei e ao direito e esse poder pode ser sujeito a uma fiscalização por parte dos tribunais, até porque independentemente dessa situação, já referia o prof. Freitas do Amaral que os atos não são totalmente vinculados nem totalmente discricionários, sendo que o prof. Vasco pereira da Silva vai mais longe ao afirmar que (não os atos) mas antes os poderes da administração não são nem totalmente vinculados nem totalmente discricionários. Tradicionalmente eram referidos como limitações ao poder discricionário e consequentemente como atos vinculados a competência (que é sempre de ordem pública) e o fim, sendo que atualmente também os princípios serão aspetos vinculados, havendo violação destes há uma ilegalidade.

Neste caso o que está em causa é um problema relativo ao fim, cada ato administrativo tem um fim, e este especificamente (de expropriação) tem de ter um fim público. Neste sentido, cumpre distinguir duas situações, as que se apresentam como sendo menos graves, porque há um desvio de poder e a substituição de um interesse público (prescrito pela lei) por outro interesse público, do qual se retira a consequência de anulabilidade, das outras situações em que haverá para além de um crime de corrução, uma situação grave do ponto de vista administrativo que gera nulidade do ato (art. 161º/1 e) CPA), pois há a substituição de um fim público por um privado (que é a situação alegada pelos recorrentes).

Para além disso, é da competência da Administração, de acordo com o art. 266º/1 CRP prosseguir o interesse público e os tribunais não têm de censurar essa atividade ou definir o que é o interesse público, é à lei que compete tal situação (princípio da separação de poderes) Sendo que na situação mencionada no acórdão, tenho de concordar com a sentença proferida pois estamos perante, sem sombra de dúvida, de um interesse público independentemente do que reflexamente o centro comercial irá beneficiar com a passagem dos peões e de uma possível subida de compras e tudo o que lhe está adjacente. O interesse privado não é forçosamente incompatível com o interesse público. Não foram assim violados os artigos os artigos 66º e 266º/1 da CRP e os artigos 1º e 2º do CE.

Em segundo lugar, temos a questão suscitada pelos recorrentes de que a construção da infraestrutura beneficiava um interesse privado, utilizando o argumento de que a obra iria ser executada por um particular e não pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, sendo que era esta que detinha competência e atribuições para tal (na altura da vigência da Lei nº159/99 art.18º/1 c) que atualmente se encontra revogada pela Lei 75/2013 onde se encontra também competência do Município para tal, havendo equiparação com o art. 23º/1 c)). Cumpre clarificar, desde já, que o interesse público pode ser prosseguido tanto pelos órgãos da administração como por entidades privadas, sendo que não é retirado o carácter de “público” ao interesse em causa. Desde logo isso é possível, a título de exemplo, através de uma concessão que pode revestir a pele de ato administrativo (ou de contrato) mas enquanto ato seria primário e permissivo, no sentido de possibilitar alguém a adotar/omitir uma conduta que de outro modo lhe estaria vedada, a Administração atribuía assim uma vantagem, transferindo para a entidade privada o exercício de uma atividade pública que esta irá desempenhar por sua conta e risco atendendo sempre ao interesse geral, é o chamado “exercício privado de funções públicas”.

Em terceiro lugar, surge a questão do ato administrativo de expropriação ter sido praticado pelo Secretário de Estado da Administração Local, no exercício de competência delegada do Ministro Adjunto. Desde logo o ato administrativo em causa classifica-se como um ato administrativo discricionário (já mencionado supra), primário (pois versa pela primeira vez sobre uma determinada situação da vida), impositivo (pois neste caso determinada que os recorrentes em causa se coloquem numa posição de sujeição e arquem com os efeitos jurídicos em causa), ablativo (pois comporta a extinção ou compressão de um direito- neste caso ao direito de propriedade sobre o terreno). Neste tipo de atos administrativos há uma contrapartida por parte da administração em compensar os particulares através de uma indeminização pecuniária (art 62º/2 CRP) a qual tem de corresponder ao valor do bem sacrificado, não podendo ser meramente simbólica e tem de ter carácter reequilibrado (art 23º ss do CE) e previsto também no art. 10º/1 e nº4 CE. A proposta do Município foi de 1 milhão e 50 mil escudos.

O que está em causa nesta situação é os recorrentes alegarem que a declaração de utilidade pública era apenas da competência do ministro de acordo com o art. 14º/1 do CE e nesse sentido haveria uma renúncia da sua competência e o ato administrativo em causa seria nulo. Ora, a delegação de poderes é um ato administrativo pelo qual um órgão da administração que é competente para decidir sobre a matéria (ministro adjunto) permite, de acordo com a lei, que outro órgão pratique atos administrativos sobre a matéria (art. 44º ss CPA), é uma forma de desconcentração derivada, pelo que cumpridos os requisitos de validade do art. 47º/1, os de eficácia 47º/2 CPA e havendo lei habilitante não haverá problemas. Sendo que a alusão ao “ministro” no art. 14º/1 do CE não pretende tomar qualquer posição quanto à questão da divisão de competências entre o Ministro e o Secretário de Estado mas antes definir que é competente para a prática do ato em causa o órgão superior. Neste sentido o artigo em causa (14º CE) não cria qualquer obstáculo à delegação de poderes (tal como já proferido em sentença anterior, processo nº 44600), não havendo assim vícios do ato pois o despacho de delegação tem base legal, visto que os secretários de Estado não detêm competência própria.

Em quarto lugar, os recorrentes alegam falta de fundamentação da declaração de utilidade, que é obrigatória nos casos de expropriação urgente (que é o caso), art.15º/2 CE e ainda previsto no art. 10º/1 CE. A fundamentação da declaração foi Este local é o que melhor se adequa aos fins em vista, nomeadamente devido à necessidade de preservar todos os acessos existentes com o restaurante McDonnald’s e ao já referido espaço comercial E.Leclerc, local de elevada circulação de peões. (…) não obrigando os peões – que se deslocam do centro urbano em direção ao norte e vice-versa – a percorrerem grandes distâncias para atravessar a EN 204 que, por vezes, procedem ao seu atravessamento pondo em risco a sua segurança e da circulação automóvel.” Deste modo, partilho da opinião de que houve uma fundamentação percetível, cumprindo os requisitos necessários.

Em quinto lugar, foi alegado haver uma divergência entre a parte do imóvel a expropriar e o imóvel que consta na declaração de utilidade pública. Porém, retiro que essa divergência é apenas uma mera irregularidade e que foi sanada através da ratificação do recorrente (que neste caso deverá ter eficácia retroativa), não impedindo a compreensão dos destinatários nem com a decisão objeto de expropriação.

Cumpre ainda salientar que os municípios tinham competência para propor declarações de utilidade pública para efeitos de expropriação, de acordo com a al. c), do nº 7, do art. 64º, da Lei 169/99, de 18/09 que atualmente é equiparada à lei revogatória 75/2013 de 12 de Setembro, art. 33º/1 vv). Uma última nota que joga a favor da posição adotada, pois o que estará em jogo é o prosseguir do interesse público e nesse sentido a obra irá recair sobre o domínio do património do Município.

Concluindo, sou da opinião de que a sentença proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo foi a mais sensata, julgado improcedente a ação e indo de acordo com os limites impostos à atuação da administração, desde logo o princípio da legalidade, o princípio da proporcionalidade, boa-fé, igualdade.

Neuza Carreira, Turma B, Subturma 14, nº 57098.

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