Monday, April 9, 2018

Análise ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Processo:0874/10, Data do Acórdão: 25-01-2011, Relator: António Madureira


Cumpre fazer uma análise comentada ao acórdão supramencionado, que sumariamente explana a situação de A, SA (recorrente) que interpõe recurso contencioso, no qual pediu a anulação do despacho do Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz de 7 de Agosto de 2003, que lhe indeferiu o pedido de prorrogação do prazo da licença de construção do Aterro para Resíduos Industriais Banais, licença esta que lhe havia sido concedida por despacho da entidade recorrida de 10/9/2002, assacando-lhe os seguintes vícios: vício de forma, decorrente de falta de fundamentação; vício de desvio de poder; vício de incompetência; vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito; e vicio de violação de lei, por violação do princípio da boa fé. A sentença recorrida julgou não se verificar nenhum desses vícios e, consequentemente, julgou o recurso improcedente. A recorrente não se conformou com tal decisão, defendendo que o TAC de Coimbra incorreu em erro de julgamento relativamente a todos os vícios alegados, cuja verificação continua a defender perante o STA.

Posto isto, no presente comentário analisarei todos os pontos suscitados no presente acórdão pela recorrente e pelo STA, tendo por base os factos apresentados no ponto 2.1. e o relatório que abrange a fundamentação da recorrente e as várias decisões já indagadas nas várias secções de instâncias administrativas pelo qual passou.


Primeiramente, e seguindo a lógica de argumentação apresentada pela recorrente, importa analisar o invocado vicio de forma decorrente da falta de fundamentação por parte do Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz. Vejamos.

Nos termos do artigo 19.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de novembro, “o prazo fixado na licença de construção para a realização de obras pode ser prorrogado pelo presidente da câmara municipal, a requerimento fundamentado do interessado, quando não seja possível concluir as obras no prazo previsto pela licença”, sendo que é nos possível considerar que tal ato impugnado está incluído no universo dos atos sujeitos ao dever de fundamentação positivado no artigo 152º do CPA. Por não ter prorrogado a licença de construção nos termos requeridos pela Recorrente, esta afirma que Recorrido usa do Parecer do LNEC evocado pela CMFF para fundamentar a sua não atuação; todavia, nesse mesmo Parecer, em resposta às observações da CMFF diz-se que “os aspetos ligados ao Estudo de Impacte Ambiental não foram objeto do parecer do LNEC”.

Analisados os factos enunciados, importa salientar que, de facto, não cabe no âmbito do Parecer do LNEC que fundamentou o despacho impugnado, qualquer apreciação ambiental do projeto, ao contrário do invocado pela Entidade Recorrida e aceite pelo tribunal a quo; todavia, o nosso ordenamento jurídico estabelece um dever de fundamentação expressa, sendo que este, na opinião do professor Vieira de Andrade obriga a que o órgão administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram a praticar aquele ato, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedimento interno de formação da vontade decisória; isto é, o dever cumpre-se desde que exista uma declaração a exprimir um discurso que pretenda justificar a decisão, independentemente de ser materialmente correto, convincente ou inatacável.

Assim sendo, no presente caso, e uma vez invocado pelo Recorrido fundamentos que remetem ao Parecer do LNEC, não é possível dizer-se que há uma inobservância dos artigos 152º a 154º do CPA. Por seu turno, a questão da veracidade desta declaração e questões como a de saber se as circunstâncias e interesses indicados motivaram mesmo a não prorrogação, dizem já respeito à substância da decisão, tal como explicado pelo professor Mário Aroso de Almeida.

Seguindo a lógica do professor João Caupers, a fundamentação da decisão administrativa é, um fator indispensável para se controlar a legalidade desta, possibilitando o diagnóstico de diversas patologias da decisão, como é o caso do: desvio de poder (que se traduz numa disfunção entre os motivos principalmente determinantes da decisão e os fins para que a lei conferiu ao órgão decisor o poder de a tomar), a ofensa dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade, da imparcialidade e a boa fé e situações de erro de facto e de erro de direito que , na minha opinião, se podem aplicar neste caso concreto.




Em segundo lugar, é declarado pela Recorrente uma aplicação errada do direito pelo tribunal a quo que considerou que “o ato do Recorrido de 07.08.2003 não enferma do vício de desvio de poder, argumentando na douta sentença que só pode ser reconhecido o desvio de poder quando o ato comporte o exercício de um poder discricionário, que não se verificava no caso, uma vez estar perante um ato vinculado”.  A Recorrente discorda considerando se tratar de uma questão de discricionariedade imprópria uma vez verificada uma liberdade probatória da Administração, na qual como é sabido, existe uma margem de livre apreciação das provas, mas com a obrigação de apurar a única solução correta; e adianta haver um abuso por parte do Recorrido da liberdade probatória que a lei lhe confere, ao analisar questões absolutamente alheias às constantes na lei e indeferir o pedido de prorrogação da licença. Assim, na visão da recorrente, pelo facto de havendo discordância entre o motivo principalmente determinante da prática do ato e o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário impróprio, o ato impugnado padece do vício de desvio de poder, nos termos do artigo 19º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA).


A este propósito, importa elucidar que:

1)   A margem de livre decisão administrativa consiste num espaço de liberdade de atuação administrativa conferido pela lei e limitado pelo bloco de legalidade; a discricionariedade é uma das duas formas de margem de livre decisão existentes e que se opõem ao chamado poder vinculado.  

2)   Vinculação e discricionariedade são as duas formas típicas pelas quais a lei modela a atividade de Administração pública:


A)   O poder é vinculado quando a lei não remete para o critério do respetivo titular a escolha da solução concreta mais adequada;

B)   O poder é discricionário quando fica entregue ao critério do respetivo titular, que pode e deve escolher a solução a adotar em casa caso como mais ajustada à realização do interesse publico protegido pela norma que o confere.  

3)   De salientar, que não há atos totalmente vinculados, nem atos totalmente discricionários.  

4)   Para Afonso Queiró, o poder discricionário consiste numa escolha livre do órgão competente de uma das varias soluções conformes com o fim da lei. Contrariamente, a maioria da doutrina, tem entendido que na discricionariedade, a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer solução que respeite a competência e o fim legal, antes o obriga a procurar a melhor solução que satisfaça o interesse publico de acordo com os princípios jurídicos que orientam a sua atuação.

No presente acórdão, coloca-se a questão de saber se: a norma do artigo 19, nº6 é totalmente vinculada (tal como defendido pelo Recorrido) ou se, por seu turno é uma questão de discricionariedade imprópria (tal como considerada pela recorrente)?  
 A este propósito e seguindo a opinião do professor Freitas do Amaral, que anteriormente remetia discricionariedade imprópria para situações em que o poder jurídico conferido por lei à Administração tenha de ser exercido em termos tais que o seu titular não se deva considerar autorizado a escolher livremente entre as várias soluções possíveis, mas antes obrigado a procurar a única solução adequada; podemos agora (desde a sua última edição) denominar a mesmas situações como exemplos de verdadeira autonomia por parte da Administração em situações como: a liberdade probatória (a Administração para tomar uma dada decisão tem de apurar a verificação de pressupostos da mesma, à luz dos meios de prova existentes), a discricionariedade técnica(decisões da Administração tomadas com base em estudos prévios de natureza técnica e segundo critérios extraídos de normas técnicas) e a justiça burocrática (Administração tem de avaliar pessoas ou com portantes com base em critérios de justiça material).

Assim sendo, no caso concreto, estamos perante discricionariedade propriamente dita? O professor Freitas do Amaral considera atualmente que sim, posto que:
·      A discricionariedade equivale a uma obrigação de escolher a solução mais acertada;

·      E uma vez é possível clarificar que no presente caso que:
a)      A entidade administrativa tem liberdade probatória, da qual abusou ao analisar questões absolutamente alheias às constantes na lei e indeferir o pedido de prorrogação da licença.
b)     Tendo em conta os aspetos enumerados pelo professor como podendo ser de discricionariedade, no meu ponto de vista: a determinação dos factos e interesses relevantes para a decisão é um dos fatores referidos no acórdão e que remetem certamente para uma questão de discricionariedade.

Verificada uma discrepância entre o fim efetivamente prosseguido pela Administração e o fim legal estamos perante o vicio de desvio de poder, que resulta do exercício dos poderes discricionários por motivo principalmente determinante (que por vezes radica razões pessoais) de não concilia com o fim visado pelo legislador com a atribuição de tais poderes.
Deste vicio, radicam várias posições, sendo que, nomeadamente o professor Mário Aroso de Almeida não considera neste domínio o ato inválido; todavia, parte da doutrina, com a qual concordo, nomeadamente os professores Freitas do Amaral e João Caupers vem, entretanto, defender a aplicação da sanção da nulidade aos atos administrativos que enfermassem de desvio de poder para fins de interesses privados, que está consagrada na nova alínea e) do nº2 do artigo 161º do CPA.


Terceiramente, a recorrente refere a violação do princípio da proporcionalidade devido ao facto de: o Decreto-Lei n.º 186/90, de 6 de junho não sujeitar este tipo de aterros a avaliação de impacto ambiental, mas que por vontade da CMFF o EIA foi pedido já no andamento do processo, em projeto que legalmente não tinha de ser sujeito a avaliação de impacto ambiental, e para uma zona que não era considerada como sensível pela própria Câmara Municipal.
Uma vez que o EIA era legalmente dispensado, e este veio a ser pedido numa fase posterior, tal pedido pode ter várias interpretações, sendo que pode ser integrado a meu ver: na falta de base legal (a prática de um acto administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo)
Deste modo, podemos concluir que o principio da proporcionalidade reconhecido pelo artigo 266º, nº2 da CRP obriga a Administração Pública a provocar com a sua decisão a menor lesão de interesses privados compatível com a prossecução do interesse público em causa; assim sendo, e uma vez verificado o pedido de EIA “desnecessário” pela CMFF considero que há efetivamente um vicio de violação da lei por violação do principio da proporcionalidade, ou seja, há uma discrepâncias entre o conteúdo do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis.


Em quarto lugar, a recorrente invoca uma questão de incompetência do Presidente da CMFF pelo facto de este “se ocupar-se de questões que foram e são devidamente apreciadas pelos órgãos governamentais competentes, confundindo dessa forma o âmbito da licença de construção, com o âmbito, quer da autorização do INR para a instalação do aterro para RIB, quer da licença ambiental”.

A este propósito interessa saber que: há situações em que o órgão administrativo não tem o poder de praticar o ato, mas em que não existe usurpação de poderes denominando-se de situações de Incompetência da entidade administrativa, sendo mais rigoroso distinguir a falta de atribuições da mera falta de competência:

a) Existe a falta de atribuições (incompetência absoluta) quando um órgão de uma pessoa coletiva publica pratica um ato que cabe nas competências de um órgão pertencente a outra pessoa coletiva publica e, portanto, que não só não se inscreve no âmbito das competências, como também é alheio as atribuições da pessoa coletiva a que o órgão pertence.  

b) Existe mera falta de competência (incompetência relativa) quando o órgão pratica um ato administrativo para o qual não tem competência, mas que se inscreve no quadro de atribuições em função das quais esse órgão atua; esta situação ocorre dentro do Estado


 Assim, no presente acórdão, tendo por base os argumentos factuais apresentados, podemos considerar que de facto estamos perante uma falta de atribuições do Presidente da CMFF que deve ser sancionada com a nulidade do ato administrativo em causa ao abrigo do artigo 161º, nº2, b do CPA



Por último, a recorrente menciona uma violação do princípio da boa fé atendendo aos factos mencionados, em que considera que é manifesto que ao não reconhecer que com a sua atuação tinha contribuído decisivamente para o atraso verificado, o Recorrido atuou com má fé, ou no mínimo, não respeitou os ditames da boa fé.

O princípio da boa fé positivado no artigo 10º do CPA não apresenta especificidades da sua aplicação à Administração Pública; porém neste princípio estão subjacentes 2 limites que se colocam à atividade administrativa pública:
a)      A Administração Público não deve atraiçoar a confiança que os particulares interessados puseram num certo comportamento seu
b)     A Administração Pública não devia iniciar o procedimento legalmente previsto para alcançar um certo objetivo com o propósito de atingir um objetivo inverso, ainda que de interesse publico.

Assim, e tendo por base os elementos fácticos apresentados no acórdão, considero que há uma efetiva violação do princípio da boa fé pelos motivos enunciados anteriormente.


Depois de analisados os cinco argumentos enunciados e levantados pela recorrente, e em jeito de síntese, importa enfatizar que: de facto não há falta de fundamentação, mas uma incoerência entre os factos e os fundamentos apresentados pelo recorrido, tal como foi concluído pelo STA; a este propósito e seguindo a lógica do professor João Caupers, podemos de facto negar um vicio de forma, mas que se vai consubstanciar num vicio de desvio de poder. Este que, por sua vez será o ponto fulcral para justificar todas as outras ações do recorrido.
Assim, e não privilegiando os argumentos usados pelo STA para justificar o acórdão quanto há existência de vicio por desvio de poder e há inexistência de violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da boa fé, concordo de facto com a decisão de anular o despacho, mas adoto uma argumentação mais próxima da utilizada pela recorrente para justificar a justeza da anulação do despacho. Do meu ponto de vista critico e analítico considero que, de forma a complementar das alegações da violação do principio da proporcionalidade e da boa fé, que foram recusadas pelo STA,  considero que a estas se deve ainda acrescentar a, no meu ponto de vista, indiscutível violação do principio da imparcialidade (artigo 9º do CPA) que impõe que os órgãos e agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo nas situações que devem decidir ou sobre as quais se pronunciem sem carácter decisório como forma de reforçar a decisão do STA. Com uma perfeita associação entre o vicio do desvio de poder e a intrínseca violação do princípio da imparcialidade, fundamento a minha posição a favor da anulação do despacho do Presidente da CMFF.




Bibliografia:


·  AROSO DE ALMEIDA, Mário. (2015) Teoria geral do Direito administrativo – O novo regime do código do processo administrativo. Almedina editora (Página 261 a 320)


·  FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Reimpressão da 3 ed., 2017, Almedina (Páginas 65 a 121 e Páginas 337 a 372)


· MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, Dom Quixote, Lisboa, Introdução e Princípios Fundamentais, 3ª ed., Dom quixote, 2004 (Páginas 176 a 218)


· EIRÓ, JOÃO CAUPERS VERA. (2016) Introdução ao Direito Administrativo. Âncora editora (Páginas 63 a 79)


· VIEIRA DE ANDRADE , José Carlos, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina (Páginas 11 a 22)



Discente: Daniela Nunes Silva, nº57354, Subturma 14, 2ºB

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