Monday, December 18, 2017

Descentralização para as Autarquias Locais



A 16 de Fevereiro de 2017, o Conselho de Ministros aprova a Proposta de Lei n.º 62/XIII, que prevê a transferência de competências para as autarquias locais e entidades intermunicipais essencialmente nas áreas da educação, saúde (cuidados primários e continuados), ação social, transportes, cultura, habitação, proteção civil, segurança pública, áreas portuárias e marítimas e gestão florestal.
Em documento com a mesma data, emanado pelo Gabinete do ministro adjunto, é dito, em referência à proposta de lei citada que “este pacote de descentralização, previsto no programa do XXI Governo Constitucional e encarado como pedra angular da reforma do Estado, tem em vista reforçar e aprofundar a autonomia local, através da transferência de competências da administração direta e indireta do Estado para órgãos mais próximos das pessoas”. Entretanto, quando já este processo se encontrava em apreciação na especialidade no Parlamento, resolveu-se suspender a discussão das propostas do Governo e de outros partidos antes das eleições autárquicas de 1 de outubro de 2017. Apesar de tal interregno, acredita-se que a descentralização deve voltar à agenda parlamentar já no inicio de 2018, visto que o Governo tem vindo a negociar com a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) um conjunto de 23 diplomas setoriais para a transferência de competências e entregou um anteprojeto de nova Lei das Finanças Locais.


Tendo em conta os factos apresentados, importa fazer uma breve análise jurídica dos vários conceitos em que subjaz esta noticia:

I.     A existência de autarquias locais no conjunto da Administração Pública portuguesa é um imperativo constitucional, estabelecido pelo artigo 235º, nº2 da CRP: “As autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas.” Trabalhando mais cuidadosamente neste conceito, o professor Freitas do Amaral refere que as autarquias locais são pessoas coletivas públicas de população e território, correspondentes aos agregados de residentes em diversas circunscrições do território nacional, e que asseguram a prossecução de interesses comuns resultantes da vizinhança, mediante órgãos próprios, representativos dos respetivos habitantes. Esta definição tem a vantagem de por em destaque os elementos da noção de autarquia: a população, o território, a prossecução de interesses próprios, e a existência de órgãos representativos. Quanto a este Freitas do Amaral considera que não há autarquia local sem “órgãos eleitos em eleições livres pelas respetivas populações”.

II.    Associado ao conceito de autarquias locais temos o principio da autonomia local, consagrado no nº1 do artigo 6º da CRP: o nº1 do artigo 3º da Carta Europeia de Autonomia Local define este principio como impondo o direito e a capacidade efetiva de as autarquias locais regularem e gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das respetivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos. Esta parte importante dos assuntos públicos que às autarquias locais deve caber é determinável com base no principio da subsidiariedade, consagrado, tanto no referido nº1 do artigo 6º da CRP, como no nº3 do artigo 4º da Carta: os interesses das populações devem ser prosseguidos pelas entidades publicas que se encontram mais próximas daquelas, sem prejuízo de eficiência económica e do respeito pelos princípios da igualdade e da solidariedade entre os cidadãos. Em termos práticos, dir-se-á que, em principio, tudo quanto puder ser eficazmente decidido e executado ao nível autárquico não deve ser atribuído ao Estado e aos seus agentes.

III.  No conjunto de autarquias locais existentes, os municípios são a autarquia local por excelência na expressão de um acórdão do Tribunal Constitucional e isso revela-se claramente na legislação. Importantes domínios de atividade administrativa estão reservados aos municípios e a justificação pode entender-se, quase sempre, no facto de eles possuírem a dimensão mais adequada para a realização de muitas tarefas. A complexidade da atividade administrativa requer meios financeiros, humanos e técnicos que uma autarquia de pequena dimensão, como é, normalmente, a freguesia, não está em condições de exercer devidamente.

IV.  Para uma melhor compreensão dos vários conceitos, importa ainda referir, que a expressão poder local não é sinónimo de administração local autónoma, nem de autarquia local. Segundo Freitas do Amaral, só existe poder local quando as autarquias locais são verdadeiramente autónomas e têm um amplo grau de autonomia administrativa e financeira: isto é, quando forem suficientemente largas as suas atribuições e competências, quando forem dotadas dos meios humanos e técnicos necessários, bem como dos recursos materiais suficientes, para o prosseguir e exercer, e quando não forem excessivamente controladas pela tutela administrativa e financeira do poder local. É difícil, na prática, saber onde e quando há poder local, porque se trata de uma questão de grau. Em Portugal não existe com toda a certeza, porque as competências das autarquias locais são restritas, os meios humanos e técnicos disponíveis escassos, os recursos financeiros claramente insuficientes, e a tutela do Estado sobre as autarquias locais – depois de algum tempo de atenuação – recrudesceu fortemente nos últimos anos.

V.   Depois da exposição de conceitos relativos às autarquias locais, e tendo em conta a noticia apresentada importa salientar que a existência constitucional de autarquias locais e o reconhecimento da sua autonomia face ao poder central fazem parte da própria essência da democracia, e traduzem-se efetiva e vulgarmente no conceito jurídico-político de descentralização, sobretudo no contexto português.

VI.  Na descentralização em sentido jurídico, as tarefas da administração pública não são desempenhadas por uma só pessoa coletiva – o Estado –, mas por várias pessoas coletivas diferentes. Já na descentralização em sentido político, os órgãos representativos das populações locais são eleitos livremente por estas. Pode haver descentralização em sentido jurídico e não em sentido político (assim sucedia com a Constituição de 1933, mas quando os dois tipos de descentralização se aliam, fala-se em autoadministração das populações locais.

VII. Chamar-se-á, portanto “descentralizado”, o sistema em que a função administrativa não esteja apenas confiada ao Estado, mas também a outras pessoas coletivas territoriais.

VIII.  De ma forma geral, a descentralização torna-se vantajosa tendo em conta que: primeiro, garante as liberdades locais, servindo de base a um sistema pluralista de Administração Pública, que é por sua vez uma forma de limitação ao poder político; segundo, proporciona a participação dos cidadãos na tomada das decisões públicas em matérias que concernem aos interesses, e a participação é um dos grandes objetivos do Estado moderno (art. 2º CRP); depois, permite aproveitar para a realização do bem comum a sensibilidade das populações locais relativamente aos seus problemas, e facilita a mobilização das iniciativas e das energias locais para as tarefas de administração pública; e proporcionar, em princípio, soluções mais vantajosas do que a centralização, em termos de custo-eficácia.

IX.  Todavia, a descentralização também oferece alguns inconvenientes: o primeiro é o de gerar alguma descoordenação no exercício da função administrativa; e o segundo é o de abrir a porta ao mau uso dos poderes discricionários da Administração por parte de pessoas nem sempre bem preparadas para os exercer.

X.    Em Portugal, o art. 6º/1 CRP, estabelece que o “Estado é unitário e que respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locas e da descentralização democrática da administração pública”. E no mesmo sentido vai o art. 267º/2 CRP. Por consequência, constitucionalmente, o sistema administrativo português tem de ser um sistema descentralizado: toda a questão está em saber qual o grau, maior ou menor, da descentralização que se pode ou deve adotar.

XI.  A descentralização tem de ser submetida a certos limites, não podendo ser ilimitada, visto que se assim fosse degeneraria rapidamente no caos administrativo e na desagregação do Estado, alem de que provocaria atropelos à legalidade, à boa administração e aos direitos dos particulares. Esses limites podem ser de três ordens: limites a todos os poderes da Administração, e, portanto também aos poderes das entidades descentralizadas; limites à quantidade de poderes transferíveis para as entidades descentralizadas (art. 267º/2 CRP).; e limites ao exercício dos poderes transferidos (chamada “Tutela Administrativa, ou seja, conjunto dos poderes de intervenção de uma pessoa coletiva pública na gestão de outra pessoa coletiva, a fim de assegurar a legalidade ou o mérito da sua atuação)

XII. A tutela administrativa sobre as autarquias locais é hoje uma simples tutela de legalidade, pois já não há tutela de mérito sobre as autarquias locais (art. 242º/1 CRP e Lei 27/96). - Quando averiguamos da legalidade de uma decisão, estamos a apurar se essa decisão é ou não conforme à lei. Portanto, a entidade tutelada (autarquias locais) tem legitimidade para impugnar, quer administrativa quer contenciosamente, os atos pelos quais a entidade tutelar (Estado) exerça os seus poderes de tutela.


Em jeito de conclusão, e a propósito dos factos apresentados na noticia referida é relevante esclarecer que: no quadro atual em Portugal temos um sistema administrativo descentralizado, se bem que ainda algo robusto, isto é, as competências das autarquias locais são restritas, os meios humanos e técnicos disponíveis escassos, os recursos financeiros claramente insuficientes, e a tutela do Estado sobre as autarquias locais – depois de algum tempo de atenuação – recrudesceu fortemente nos últimos anos, tal como se verificou a nível da educação , a quem foram auferidas algumas competências do ensino básico às autarquias locais.

Todavia, e mostrando o meu profundo agrado por esta nova proposta, as mudanças apenas se traduziram numa diferente repartição das competências entre os órgãos estaduais e os órgãos autárquicos. Ou seja, pegando nos exemplos da área da saúde e do ensino, as autarquias passaram a ter competência também a nível do ensino secundário e de outros, o mesmo acontecerá na gestão de serviços de saúde, em que os órgãos autárquicos poderão ter alguma expressão nas suas autarquias. Portanto, a ideia desta “descentralização para as autarquias locais” recai essencialmente na transferência de competências, e por inerência de maior autoridade e responsabilidade, da tutela para entidades locais/regionais, permitindo  que, por exemplo, no âmbito da saúde a gestão dos serviços também passe a depender das autarquias , se bem que se mantenha a lógica do Serviço Nacional de Saúde e das competências do ministério (são apenas alterações que não poem em causa o esquema da organização). Assim, poderão haver diferenças de autarquia para autarquia, por opção dos órgãos autárquicos nas matérias que cabem á sua organização (a organização e distribuição de centros de saúde poderá começar a caber exclusivamente ás autarquias), todavia, mantém-se as exigências do SNS (tem de haver hospitais, centros de saúde, cuidados primários – mantem-se inalteráveis), apenas se alteraram do ponto de vista de organização dos serviços;  assim como,  os ministérios continuam a desempenhar as funções de coordenação geral , se bem que com uma repartição diferente das competências entre os órgãos estaduais e os órgãos autárquicos.

Do meu ponto de vista, e tendo em conta que a proposta apresentada pelo Conselho de Ministro, esta em nada viola os limites à descentralização ou um possível limite à revisão constitucional. Considero, portanto, benéfica a proposta de “descentralização apresentada”, visto que permitirá proporcionar decisões mais ajustadas às condições locais/regionais, pela maior proximidade do poder local com os seus munícipes, e, não menos importante, pelo facto de libertar a tutela para outro tipo de decisões, vincadamente estratégicas para o país e indutoras de uma visão conceptual do Estado. Assim, esta “reorganização administrativa” poderá ser o ponto de partida para o desenvolvimento do país como um todo, mas apenas considerando o conjunto de ressalvas referidas e em estrito respeito face às idiossincrasias locais/regionais.



Bibliografia:




Daniela Silva, nº57354

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