Thursday, November 2, 2017

As Relações Jurídicas Administrativas Multipolares no Divã da Psicanálise


A temática das Relações Jurídicas Administrativas Multipolares apresenta uma alteração do paradigma Estado-cidadão bilateral e, existindo posições que defendem a prevalência típica de tais relações no D. Administrativo - tendo este de mudar, então, a sua natureza e passar a desempenhar funções de repartição e nivelamento de interesses contrastantes - é visível a importância deste tema recorrente, principalmente, nas áreas do ordenamento do território, urbanismo, ambiente, entre outras. Neste âmbito, encontramos várias situações de colisão, nomeadamente, entre a Administração e o cidadão, entre o interesse público e o interesse privado e, inclusive, embora não vá ser abordado nesta dissertação, entre a Administração agressiva e a Administração de prestação.
Neste trabalho tratar-se-á das Relações Jurídicas Multipolares em face dos institutos de D. Administrativo geral, centrando-se esta realidade no ato administrativo (devido à primordial importância e utilização na atividade administrativa), embora contemos ainda com os regulamentos e contratos, por exemplo. De tal forma, não importará para esta explanação a responsabilidade administrativa emergente de Relações Jurídicas Multipolares, concretamente, os casos em que o particular é lesado por ação ou omissão administrativa.


1.       Introdução às Relações Jurídicas Administrativas Multipolares

As Relações Jurídicas Multipolares podem ser caracterizadas através de vários critérios, nomeadamente materiais, normativos e pretensivos. Estes últimos são os principais, atendendo à forma como exercemos e se estruturam os interesses dos sujeitos nelas envolvidos. Podem ser ainda de:
·         Oposição Recíproca: Favorecimento dum particular implicará, imediata e necessariamente, o prejuízo doutro particular. Teremos um interesse ativo constitutivo em colisão com um interesse passivo opositivo.

Ou de:
·         Concorrência de Atribuição: Confronto de diversos interesses privados colidentes, aspirando a decisão de escolha de repartição de recursos, relativamente escassos, cuja competência pertence à Administração Pública.


1.1 Conceitos

O conceito de “multipolaridade” é utilizado a par doutros termos como relações administrativas “multilaterais”, “poligonais” ou “triangulares”. Contêm relações que acabam por abranger, além do destinatário de determinada medida administrativa, outros sujeitos não contemplados, os terceiros.[1]
Ossenbühl definiu que as relações multilaterais ou poligonais são típicas constelações jurídico-públicas nas quais um ato administrativo titula não só relação unidimensional entre a Administração Pública e o destinatário da medida, mas cria, também, relações jurídicas triangulares entre o Estado e dois cidadãos afetados, um que será favorecido e um que será prejudicado.
König Schmidt-assmann avançou que relações jurídicas multilaterais não se esgotam numa medida executiva dirigida ao destinatário, mas que incluem também terceiros cujos interesses são afetados (noção utilizada em D. da Economia).


1.2 Elementos Conceptuais
Os elementos conceptuais das Relações Jurídicas Administrativas Multipolares são, sumariamente:
- Relação Jurídica – conexão entre dois ou mais sujeitos, resultante dum facto concreto, previsto numa determinada norma jurídica e da qual decorrem, regra geral, direitos e deveres recíprocos para cada um deles.
- Sujeitos Privados – Pressupõe-se a participação de, pelo menos, dois sujeitos privados independentes da Administração Pública que ajam ao abrigo da sua liberdade natural, de acordo com os seus interesses privados apenas.
- Interesses Conflituantes - Pressupõe conflito entre interesses privados, implicando favorecimento dum através do sacrifício do outro. A caracterização do exercício de interesses privados na relação com poder administrativo faz-se através da distinção entre:                                             
Interesses Multipolares de Neutralização – visam eliminar certa norma do ordenamento jurídico.
            Interesses Multipolares de Constituição – visam emitir certa norma no ordenamento jurídico.

- Administração Pública – entidade que, no exercício de funções públicas, tenha prerrogativas de conformação jurídica sobre o exercício dos direitos privados conflituantes.
- Ato Jurídico-Público – Ato de o legislador conferir mandato à Administração Pública para que esta possa intervir em litígios interprivados, explícita ou implicitamente.
- Administratividade – necessário encontrar critério que permita afirmar que determinada relação jurídica deve ser qualificada como administrativa. Sê-lo-á quando os princípios e as normas que a regem respeitem à função administrativa. 
Assim, temos questões de D. Público ou de D. Privado? A resposta prende-se com a interpretação jurídica, cuja fonte é a lei. Primeiramente, deve verificar-se se normas públicas e normas privadas têm âmbito de aplicação coincidente. Caso tenham, há-que analisar se a lei decidiu sobre o conflito normativo concreto. Se não o tiver feito, devido à insuficiência de dados normativos inequívocos quanto ao regime aplicável, dever-se-á considerar procedentes os argumentos que sustentam ter o D. Público assumido a liderança no sistema.
As Relações Jurídicas Multipolares no D. Administrativo consistem em relações jurídicas administrativas transcendentes do esquema dogmático tradicional do D. Administrativo de relação bipolar Administração-cidadão, abrangendo todos os sujeitos participantes. Ou seja, são relações em que, além de a Administração Pública estar presente e emitir um ato administrativo, há sujeitos privados (sendo um, o destinatário do ato administrativo) com interesses em colisão, diversos e opostos entre si. Um exemplo real no âmbito, por exemplo, da concorrência empresarial, trata da alegação duma empresa em relação a uma violação das regras da concorrência ao haver benefício concedido por uma entidade pública a outra empresa, sua concorrente.
É importante referir que as relações triangulares com três entidades públicas não são relações jurídicas multipolares (devido a assentarem num conflito de atribuições ou poderes funcionais), tal como não o são relações entre duas entidades públicas, nem entre um particular e uma pessoa coletiva, nem entre dois particulares, estando um a desempenhar função administrativa e, consequentemente, tendo duplo estatuto.

De tal modo:
- Relações Jurídicas Multipolares – relações jurídicas onde estão presentes dois sujeitos privados, um com autorização da Administração, cujos respetivos interesses estão em oposição, sendo que o interesse dum não se pode realizar senão à custa do interesse do outro.
Existindo, portanto, dois ou mais interesses heterogéneos e contrapostos de vários cidadãos que se posicionam em face da Administração Pública, deve esta dar resposta ao litígio, ponderando os interesses em jogo, através da adoção de um ato jurídico-público.
Pode-se então entender que a Administração Pública deve ter uma função dupla ao legitimar uma intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica do particular igualmente? Ou deve o D. Administrativo ser, em vez do Direito da Administração, o direito dos direitos individuais face à Administração?
A competência de mediar foge ao âmbito da Administração Pública, segundo opinião conservadora de prossecução do interesse público. Porém, a ilegitimidade para resolver conflitos de interesses privados pela Administração Pública só se verificará quando se demonstre que a arbitrariedade do legislador se deva reduzir a zero. Como foi supramencionado, existindo fundamento na lei, como procede a Administração se o legislador não cumprir os seus deveres de proteção dos direitos fundamentais? Não pode, então, resolver diretamente, salvo em determinadas situações limite. Está, porém, sujeita a dupla ponderação qualificada. Caso haja lei inconstitucional, deve ser vedado à Administração o poder de a desaplicar, na maioria dos casos.


1.3 Doutrina Portuguesa sobre Relações Jurídicas Multipolares

Na nossa ordem jurídica, a questão das Relações Jurídicas Multipolares não foi abordada pela doutrina nem jurisprudência durante muito tempo, devido à vigência do modelo contencioso-administrativo francês orientado em função do controlo da legalidade e não para a defesa dos administrados. Com a influência germânica, a doutrina debruçou-se sobre a questão e estas relações passaram a figurar nos desenvolvimentos doutrinários de D. Administrativo com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo. Com este código, abandonámos modelo francês e aproximámo-nos do modelo germânico. Apesar da contraposição existente entre a jurisprudência (que aplica institutos de tipo francês) e doutrina que tenta arranjar meio termo entre este e as inovações do legislador (influenciadas pelo sistema germânico), a doutrina portuguesa defende que neste tipo de relações já não há esquema referencial binário só com a presença da Administração Pública e particular. Baseando-se em STEINBERG, afirma que têm traços estruturais – traços suscetíveis de incidirem na configuração deste tipo de relações jurídicas - como a pluralidade de interesses públicos e privados, a programação legal relativamente ténue e a complexidade de situações que exigem avaliação de riscos apelativos de conhecimentos técnico-científicos.
Ao se substituir a intervenção direta do Estado na vida social por formas de regulação e planeamento, entre outras, gera-se uma multiplicidade de efeitos suscetíveis de afetar um elevado número de sujeitos. No Estado Liberal existiam relações desta natureza pois as amplitudes dos efeitos da atividade administrativa apresentavam-se como conaturais a qualquer sociedade politicamente organizada. Os traços estruturais supramencionados são importantes na medida em que, nas relações jurídicas administrativas, a amplitude de atuações administrativas não permite enquadramento normativo total, tornando as fronteiras difusas e tornando difícil determinar os sujeitos legitimados a intervir; a complexidade técnica dificulta a determinação dos sujeitos afetados, bem como a aferição da intensidade da lesão; a pluralidade de interesses exige intervenção de várias entidades públicas que efetuam, entre si e com os particulares afetados, relações complexas.
Assim, em suma, definiu-se que “nestas relações jurídicas se verifica a atribuição dum ato administrativo a um destinatário, repercutindo este, efeitos na esfera de terceiros”.


1.4 Programa Normativo Multipolar e Mandato de Conformação Multipolar
           
A doutrina portuguesa tem trabalhado na identificação da natureza e na determinação da posição dos não destinatários dum ato administrativo, para que se lhes reconheça tutela administrativa e jurisdicional.  Nas Relações de que se tem vindo a tratar, caracterizam-se as posições jurídicas dos terceiros como interesses legalmente protegidos – opinião partilhada pela jurisprudência administrativa.
Assim, qual a natureza das posições jurídicas dos privados? Depende da solução do legislador para regular o conflito: pode considerar que sujeito é apenas detentor dum mero interesse de facto, não protegido normativamente ou pode esta consistir na concessão de direitos subjetivos que particulares podem fazer valer perante a Administração e impliquem compressão dos interesses ou direitos doutro sujeito privado, sendo ou não, os destinatários da medida administrativa reguladora daquela situação jurídica. A colisão de interesses privados, contudo, só se pode resolver através do programa normativo multipolar.

Programa Normativo Multipolar – De forma geral e abstrata, regula os direitos e deveres dos participantes da relação jurídica, nomeadamente os interesses conflituantes dos sujeitos privados em questão. Assenta na conexão dos deveres objetivos de proteção estadual com o dever de concretização e efetivação dos direitos fundamentais por parte do legislador ordinário. É o conteúdo da norma contida no ato da função legislativa, através do qual o legislador regula a situação de colisão dos interesses privados. Existe, assim, uma margem de manobra, embora também esta tenha limites impostos pela lei ordinária.
            A par do Programa Normativo Multipolar existe ainda a figura do Mandato de Conformação Multipolar.
Mandato de Conformação Multipolar – Tem dupla fonte, a CRP e a lei ordinária, tratando de disciplinar formas e meios ao dispor da Administração para conformar os direitos presentes no caso, ou seja, disciplina a margem de livre decisão de que a Administração dispõe para o efeito indicado. Estabelece o modo de atuação administrativa, sustentando-se em normas de competência multipolar preventivas e repressivas, devendo articular-se com critérios do programa normativo multipolar. A conformação dos interesses dá-se mediante um ato administrativo multipolar.
            Existem dois tipos de competências no Mandato de Conformação Multipolar:
            - Competência Multipolar Preventiva – É atribuída por lei à Administração, sujeitando-se uma atividade privada a autorização administrativa, suscetível de ameaçar bens doutros particulares;
            - Competência Multipolar Repressiva – É igualmente atribuída à Administração por lei, visando pôr termo a atividades ilegais dum particular que ameaça ou lesa bens doutros particulares.
Assim: programa normativo multipolar regula os interesses em conflito, no âmbito estabelecido pelo mandato de conformação multipolar através das regras supramencionadas, executando-se o mandato através do ato administrativo.


1.5   Ato Administrativo Multipolar

O Ato Administrativo Multipolar é um instrumento importante na composição de interesses privados conflituantes, a cargo da Administração Pública, que se serve das suas funções de concretização, definição, titulação e estabilização para executar o mandato de conformação multipolar, de acordo com o definido previamente pelo legislador no programa normativo multipolar. O ato é responsável por regular conflitos de interesses, tendo os destinatários de ser determináveis, variando com a estrutura do programa normativo multipolar e da situação concreta.
No ato administrativo não se faz distinção entre destinatários e terceiros pois todos os sujeitos compreendidos no programa normativo multipolar devem fazer parte do âmbito subjetivo do ato administrativo. Assim, todos devem ser notificados dos atos administrativos multipolares que os afetem e aos seus interesses (art.66º/b) e c) do CPA).

É importante referir ainda que:
- No âmbito da relação jurídica multipolar, o prazo de impugnação dum ato só se inicia quando o indivíduo tome conhecimento efetivo do próprio ato, fazendo o CPA depender a admissão da revogação de atos válidos do facto de estes serem, ou não, constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos. De tal forma, tornam-se insuscetíveis de revogação (art.140º/1, b) do CPA) em nome da segurança jurídica e necessidade de estabilização das expectativas dos privados.
- Transvio ao programa normativo multipolar - ato é inválido, sendo que Administração considerou apenas os interesses duma das partes. O regime aplicável neste caso é o da revogação de atos inválidos, contudo, a ponderação do interesse público e privado pode levar ao afastamento da nulidade, convertendo-se a nulidade em anulabilidade (art.135º do CPA) segundo fenómeno de degradação multipolar da nulidade em mera anulabilidade.
-Princípios que se devem manter em mente nesta matéria: Princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (art.4º do CPA), Princípio da Proporcionalidade (art.5º do CPA) e Princípio do Estado de Direito Democrático (art.2º da CRP) que permitem aos cidadãos obter uma vida de relações estáveis, organizadas e na plenitude dos seus direitos e deveres.



2.       Bibliografia  

- Marques, Francisco Paes. Relações Jurídicas Administrativas Multipolares. Almedina, 2011






Carolina Matroca
Nº 56795
Subturma 14
2º Ano - Turma B




[1]              Doutrina alemã analisa questões relacionadas com esta figura também do ponto de vista de terceiros, determinando formas de proteção destes sujeitos - precocemente quando que comparando com a doutrina portuguesa. A perspetiva de proteção de terceiros, surgida da jurisprudência no domínio urbanístico e sendo, antigamente, baseada apenas em relações bipolares, é desvalorizada pois particulares, nesta situação, não estão em pé de igualdade: há duplicidade estatutária entre a Administração Pública e o destinatário da medida e entre a mesma e os terceiros. OTTO MAYER avançou com a definição de “Sujeito encontrado por antecipação – o Estado” para ajudar na definição das posições jurídicas públicas e privadas nestas relações. De tal maneira, Alemanha não dava legitimidade às queixas de terceiros, tendo introduzido JELLINEK a possibilidade de realizar um recurso administrativo e tendo, por conseguinte, FLEINER, delimitado que o recurso só poderia ser colocado por terceiro diretamente interessado.
Na Alemanha, atualmente, esta figura é frequentemente utilizada e principalmente integrada no D. do Urbanismo, D. atómico, D. das minas, D. das águas, D. dos cartéis, entre outras.

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