A
temática das Relações Jurídicas Administrativas Multipolares apresenta uma
alteração do paradigma Estado-cidadão bilateral e, existindo posições que
defendem a prevalência típica de tais relações no D. Administrativo - tendo
este de mudar, então, a sua natureza e passar a desempenhar funções de
repartição e nivelamento de interesses contrastantes - é visível a importância
deste tema recorrente, principalmente, nas áreas do ordenamento do território,
urbanismo, ambiente, entre outras. Neste âmbito, encontramos várias situações
de colisão, nomeadamente, entre a Administração e o cidadão, entre o interesse
público e o interesse privado e, inclusive, embora não vá ser abordado nesta
dissertação, entre a Administração agressiva e a Administração de prestação.
Neste
trabalho tratar-se-á das Relações Jurídicas Multipolares em face dos institutos
de D. Administrativo geral, centrando-se esta realidade no ato administrativo
(devido à primordial importância e utilização na atividade administrativa),
embora contemos ainda com os regulamentos e contratos, por exemplo. De tal
forma, não importará para esta explanação a responsabilidade administrativa
emergente de Relações Jurídicas Multipolares, concretamente, os casos em que o
particular é lesado por ação ou omissão administrativa.
1. Introdução
às Relações Jurídicas Administrativas Multipolares
As
Relações Jurídicas Multipolares podem ser caracterizadas através de vários
critérios, nomeadamente materiais, normativos e pretensivos. Estes últimos são os principais, atendendo à forma
como exercemos e se estruturam os interesses dos sujeitos nelas envolvidos. Podem
ser ainda de:
·
Oposição Recíproca: Favorecimento dum particular
implicará, imediata e necessariamente, o prejuízo doutro particular. Teremos um
interesse ativo constitutivo em colisão com um interesse passivo opositivo.
Ou
de:
·
Concorrência de Atribuição: Confronto de diversos interesses
privados colidentes, aspirando a decisão de escolha de repartição de recursos,
relativamente escassos, cuja competência pertence à Administração Pública.
1.1 Conceitos
O
conceito de “multipolaridade” é utilizado a par doutros termos como relações
administrativas “multilaterais”, “poligonais” ou “triangulares”. Contêm
relações que acabam por abranger, além do destinatário de determinada medida
administrativa, outros sujeitos não contemplados, os terceiros.[1]
Ossenbühl definiu
que as relações multilaterais ou poligonais são típicas constelações
jurídico-públicas nas quais um ato administrativo titula não só relação
unidimensional entre a Administração Pública e o destinatário da medida, mas
cria, também, relações jurídicas triangulares entre o Estado e dois cidadãos
afetados, um que será favorecido e um que será prejudicado.
König Schmidt-assmann avançou que relações jurídicas multilaterais não se
esgotam numa medida executiva dirigida ao destinatário, mas que incluem também
terceiros cujos interesses são afetados (noção utilizada em D. da Economia).
1.2 Elementos
Conceptuais
Os
elementos conceptuais das Relações Jurídicas Administrativas Multipolares são,
sumariamente:
- Relação Jurídica – conexão entre dois ou mais sujeitos, resultante
dum facto concreto, previsto numa determinada norma jurídica e da qual
decorrem, regra geral, direitos e deveres recíprocos para cada um deles.
- Sujeitos Privados – Pressupõe-se a participação de, pelo menos,
dois sujeitos privados independentes da Administração Pública que ajam ao
abrigo da sua liberdade natural, de acordo com os seus interesses privados
apenas.
-
Interesses Conflituantes
- Pressupõe conflito entre interesses privados, implicando favorecimento dum
através do sacrifício do outro. A caracterização do exercício de interesses
privados na relação com poder administrativo faz-se através da distinção entre:
Interesses Multipolares de
Neutralização –
visam eliminar certa norma do ordenamento jurídico.
Interesses
Multipolares de Constituição – visam emitir certa norma no ordenamento
jurídico.
- Administração Pública – entidade que, no exercício de funções
públicas, tenha prerrogativas de conformação jurídica sobre o exercício dos
direitos privados conflituantes.
- Ato Jurídico-Público – Ato de o legislador conferir mandato à
Administração Pública para que esta possa intervir em litígios interprivados,
explícita ou implicitamente.
- Administratividade – necessário encontrar critério que permita
afirmar que determinada relação jurídica deve ser qualificada como
administrativa. Sê-lo-á quando os princípios e as normas que a regem respeitem
à função administrativa.
Assim,
temos questões de D. Público ou de D. Privado? A resposta prende-se com a
interpretação jurídica, cuja fonte é a lei.
Primeiramente, deve verificar-se se normas públicas e normas privadas têm
âmbito de aplicação coincidente. Caso tenham, há-que analisar se a lei decidiu
sobre o conflito normativo concreto. Se não o tiver feito, devido à
insuficiência de dados normativos inequívocos quanto ao regime aplicável,
dever-se-á considerar procedentes os argumentos que sustentam ter o D. Público
assumido a liderança no sistema.
As
Relações Jurídicas Multipolares no D. Administrativo consistem em relações
jurídicas administrativas transcendentes do esquema dogmático tradicional do D.
Administrativo de relação bipolar Administração-cidadão, abrangendo todos os
sujeitos participantes. Ou seja, são relações em que, além de a Administração
Pública estar presente e emitir um ato administrativo, há sujeitos privados
(sendo um, o destinatário do ato administrativo) com interesses em colisão,
diversos e opostos entre si. Um exemplo real no âmbito, por exemplo, da
concorrência empresarial, trata da alegação duma empresa em relação a uma
violação das regras da concorrência ao haver benefício concedido por uma
entidade pública a outra empresa, sua concorrente.
É
importante referir que as relações triangulares com três entidades públicas não
são relações jurídicas multipolares (devido a assentarem num conflito de
atribuições ou poderes funcionais), tal como não o são relações entre duas
entidades públicas, nem entre um particular e uma pessoa coletiva, nem entre
dois particulares, estando um a desempenhar função administrativa e, consequentemente,
tendo duplo estatuto.
De tal modo:
- Relações Jurídicas Multipolares – relações jurídicas onde estão
presentes dois sujeitos privados, um com autorização da Administração, cujos
respetivos interesses estão em oposição, sendo que o interesse dum não se pode
realizar senão à custa do interesse do outro.
Existindo,
portanto, dois ou mais interesses heterogéneos e contrapostos de vários
cidadãos que se posicionam em face da Administração Pública, deve esta dar
resposta ao litígio, ponderando os interesses em jogo, através da adoção de um
ato jurídico-público.
Pode-se então
entender que a Administração Pública deve ter uma função dupla ao legitimar uma
intervenção da autoridade pública e proteger a esfera jurídica do particular
igualmente? Ou deve o D. Administrativo ser, em vez do Direito da
Administração, o direito dos direitos individuais face à Administração?
A
competência de mediar foge ao âmbito da Administração Pública, segundo opinião
conservadora de prossecução do interesse público. Porém, a ilegitimidade para
resolver conflitos de interesses privados pela Administração Pública só se
verificará quando se demonstre que a arbitrariedade do legislador se deva
reduzir a zero. Como foi supramencionado, existindo fundamento na lei, como procede
a Administração se o legislador não cumprir os seus deveres de proteção dos
direitos fundamentais? Não pode, então, resolver diretamente, salvo em
determinadas situações limite. Está, porém, sujeita a dupla ponderação
qualificada. Caso haja lei inconstitucional, deve ser vedado à Administração o
poder de a desaplicar, na maioria dos casos.
1.3 Doutrina
Portuguesa sobre Relações Jurídicas Multipolares
Na
nossa ordem jurídica, a questão das Relações Jurídicas Multipolares não foi
abordada pela doutrina nem jurisprudência durante muito tempo, devido à
vigência do modelo contencioso-administrativo francês orientado em função do
controlo da legalidade e não para a defesa dos administrados. Com a influência
germânica, a doutrina debruçou-se sobre a questão e estas relações passaram a
figurar nos desenvolvimentos doutrinários de D. Administrativo com a entrada em
vigor do Código de Procedimento Administrativo. Com este código, abandonámos
modelo francês e aproximámo-nos do modelo germânico. Apesar da contraposição
existente entre a jurisprudência (que aplica institutos de tipo francês) e
doutrina que tenta arranjar meio termo entre este e as inovações do legislador (influenciadas
pelo sistema germânico), a doutrina portuguesa defende que neste tipo de
relações já não há esquema referencial binário só com a presença da
Administração Pública e particular. Baseando-se em STEINBERG, afirma que têm
traços estruturais – traços suscetíveis de incidirem na configuração deste tipo
de relações jurídicas - como a pluralidade de interesses públicos e privados, a
programação legal relativamente ténue e a complexidade de situações que exigem
avaliação de riscos apelativos de conhecimentos técnico-científicos.
Ao
se substituir a intervenção direta do Estado na vida social por formas de
regulação e planeamento, entre outras, gera-se uma multiplicidade de efeitos
suscetíveis de afetar um elevado número de sujeitos. No Estado Liberal existiam
relações desta natureza pois as amplitudes dos efeitos da atividade
administrativa apresentavam-se como conaturais a qualquer sociedade
politicamente organizada. Os traços estruturais supramencionados são
importantes na medida em que, nas relações jurídicas administrativas, a
amplitude de atuações administrativas não permite enquadramento normativo
total, tornando as fronteiras difusas e tornando difícil determinar os sujeitos
legitimados a intervir; a complexidade técnica dificulta a determinação dos
sujeitos afetados, bem como a aferição da intensidade da lesão; a pluralidade
de interesses exige intervenção de várias entidades públicas que efetuam, entre
si e com os particulares afetados, relações complexas.
Assim,
em suma, definiu-se que “nestas relações jurídicas se verifica a atribuição dum
ato administrativo a um destinatário, repercutindo este, efeitos na esfera de
terceiros”.
1.4 Programa
Normativo Multipolar e Mandato de Conformação Multipolar
A
doutrina portuguesa tem trabalhado na identificação da natureza e na
determinação da posição dos não destinatários dum ato administrativo, para que se
lhes reconheça tutela administrativa e jurisdicional. Nas Relações de que se tem vindo a tratar,
caracterizam-se as posições jurídicas dos terceiros como interesses legalmente
protegidos – opinião partilhada pela jurisprudência administrativa.
Assim,
qual a natureza das posições jurídicas dos privados? Depende da solução do
legislador para regular o conflito: pode considerar que sujeito é apenas
detentor dum mero interesse de facto, não protegido normativamente ou pode esta
consistir na concessão de direitos subjetivos que particulares podem fazer
valer perante a Administração e impliquem compressão dos interesses ou direitos
doutro sujeito privado, sendo ou não, os destinatários da medida administrativa
reguladora daquela situação jurídica. A colisão de interesses privados,
contudo, só se pode resolver através do programa normativo multipolar.
Programa Normativo
Multipolar – De
forma geral e abstrata, regula os direitos e deveres dos participantes da
relação jurídica, nomeadamente os interesses conflituantes dos sujeitos
privados em questão. Assenta na conexão dos deveres objetivos de proteção
estadual com o dever de concretização e efetivação dos direitos fundamentais
por parte do legislador ordinário. É o conteúdo da norma contida no ato da
função legislativa, através do qual o legislador regula a situação de colisão
dos interesses privados. Existe, assim, uma margem de manobra, embora também
esta tenha limites impostos pela lei ordinária.
A par do Programa Normativo
Multipolar existe ainda a figura do Mandato de Conformação Multipolar.
Mandato de
Conformação Multipolar –
Tem dupla fonte, a CRP e a lei ordinária, tratando de disciplinar formas e
meios ao dispor da Administração para conformar os direitos presentes no caso,
ou seja, disciplina a margem de livre decisão de que a Administração dispõe
para o efeito indicado. Estabelece o modo de atuação administrativa,
sustentando-se em normas de competência multipolar preventivas e repressivas,
devendo articular-se com critérios do programa normativo multipolar. A
conformação dos interesses dá-se mediante um ato administrativo multipolar.
Existem dois tipos de competências
no Mandato de Conformação Multipolar:
-
Competência Multipolar Preventiva – É atribuída por lei à Administração,
sujeitando-se uma atividade privada a autorização administrativa, suscetível de
ameaçar bens doutros particulares;
-
Competência Multipolar Repressiva – É igualmente atribuída à Administração
por lei, visando pôr termo a atividades ilegais dum particular que ameaça ou
lesa bens doutros particulares.
Assim:
programa normativo multipolar regula os
interesses em conflito, no âmbito estabelecido pelo mandato de conformação
multipolar através das regras supramencionadas, executando-se o mandato através
do ato administrativo.
1.5 Ato
Administrativo Multipolar
O
Ato Administrativo Multipolar é um instrumento importante na composição de
interesses privados conflituantes, a cargo da Administração Pública, que se
serve das suas funções de concretização, definição, titulação e estabilização
para executar o mandato de conformação multipolar, de acordo com o definido previamente
pelo legislador no programa normativo multipolar. O ato é responsável por
regular conflitos de interesses, tendo os destinatários de ser determináveis,
variando com a estrutura do programa normativo multipolar e da situação
concreta.
No
ato administrativo não se faz distinção entre destinatários e terceiros pois
todos os sujeitos compreendidos no programa normativo multipolar devem fazer
parte do âmbito subjetivo do ato administrativo. Assim, todos devem ser
notificados dos atos administrativos multipolares que os afetem e aos seus
interesses (art.66º/b) e c) do CPA).
É
importante referir ainda que:
-
No âmbito da relação jurídica multipolar, o prazo de impugnação dum ato só se
inicia quando o indivíduo tome conhecimento efetivo do próprio ato, fazendo o CPA
depender a admissão da revogação de atos válidos do facto de estes serem, ou
não, constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos. De tal
forma, tornam-se insuscetíveis de revogação (art.140º/1, b) do CPA) em nome da
segurança jurídica e necessidade de estabilização das expectativas dos privados.
-
Transvio ao programa normativo
multipolar - ato é inválido, sendo que Administração considerou apenas os
interesses duma das partes. O regime aplicável neste caso é o da revogação de
atos inválidos, contudo, a ponderação do interesse público e privado pode levar
ao afastamento da nulidade, convertendo-se a nulidade em anulabilidade (art.135º
do CPA) segundo fenómeno de degradação multipolar da nulidade em mera
anulabilidade.
-Princípios
que se devem manter em mente nesta matéria: Princípio da prossecução do
interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (art.4º
do CPA), Princípio da Proporcionalidade (art.5º do CPA) e Princípio do Estado
de Direito Democrático (art.2º da CRP) que permitem aos cidadãos obter uma vida
de relações estáveis, organizadas e na plenitude dos seus direitos e deveres.
2.
Bibliografia
-
Marques, Francisco Paes. Relações
Jurídicas Administrativas Multipolares. Almedina, 2011
Carolina Matroca
Nº 56795
Subturma 14
2º Ano - Turma B
[1]
Doutrina alemã analisa
questões relacionadas com esta figura também do ponto de vista de terceiros,
determinando formas de proteção destes sujeitos - precocemente quando que
comparando com a doutrina portuguesa. A perspetiva de proteção de terceiros,
surgida da jurisprudência no domínio urbanístico e sendo, antigamente, baseada
apenas em relações bipolares, é desvalorizada pois particulares, nesta
situação, não estão em pé de igualdade: há duplicidade estatutária entre a
Administração Pública e o destinatário da medida e entre a mesma e os
terceiros. OTTO MAYER avançou com a definição de “Sujeito encontrado por
antecipação – o Estado” para ajudar na definição das posições jurídicas
públicas e privadas nestas relações. De tal maneira, Alemanha não dava
legitimidade às queixas de terceiros, tendo introduzido JELLINEK a
possibilidade de realizar um recurso administrativo e tendo, por conseguinte,
FLEINER, delimitado que o recurso só poderia ser colocado por terceiro
diretamente interessado.
Na
Alemanha, atualmente, esta figura é frequentemente utilizada e principalmente
integrada no D. do Urbanismo, D. atómico, D. das minas, D. das águas, D. dos
cartéis, entre outras.
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