Saturday, November 4, 2017

A Inovação que nunca chegou


O novo Código de Procedimento Administrativo tem sido alvo de alguma controvérsia. Um dos temas mais debatidos sobre a nova reforma é a diminuição da autotutela executiva e, consequentemente, a perda do privilégio de execução prévia. No presente artigo a ser desenvolvido, pretendo abordar às principais questões da alteração deste regime, criticando a (infeliz) intervenção do legislador neste área. .

Cingir-nos-emos, apenas, ao estudo da autotutela executiva para desenvolvimento do tema proposto. Em primeiro lugar, esta caracteriza-se pelo uso da força por parte da administração, designada por coação, que visa o cumprimento de obrigações que não tenham sido voluntariamente aceites por parte dos particulares. Assim, a administração goza de um poder de execução, com recurso aos seus próprios meios e se necessário coercivamente, dos atos administrativos criadores de deveres para os particulares, no caso do seu cumprimento esbarrar numa resistência ativa ou passiva destes, sem necessidade de recorrer aos tribunais. Esta definição unilateral da determinação situação jurídica designa-se por privilégio de execução prévia.

A maioria da doutrina entende que a autotutela executiva corresponde a um dos principais pilares do poder da Administração Pública. Como refere o Prof. Mário Aroso de Almeida “tanto a obrigatoriedade, como a eventual executoriedade, são corolários da circunstância de Administração Pública, ser instituída com um poder público, ao qual o ordenamento jurídico confere, em maior ou menor medida, o poder de dizer e executar o Direito”[1]. Tal como o ilustre  Professor afirma, é este poder conferido à administração que a distingue dos particulares. Um particular, para fazer valer o seu direito subjetivo, tem que recorrer ao poder judicial de forma a obter uma sentença que execute o seu direito reconhecido.

Diferentemente da posição acima sustenta, o Prof. Rui Guerra da Fonseca vem refutar a contraposição acima referida. Para este, “ o principio da separação de poderes parece representar, ele próprio (...) a negação de uma autotutela púbica enquanto figura geral, contraponível à autotutela privada”[2]. Assim, o autor citado defende que estamos perante um heterotutela visto que cabe, em primeira instância, aos tribunais a definição do direito à situação concreta e aplicação do mesmo, segundo o Principio da Separação de Poderes (art. 111.º CRP).

Já o Professor Vasco Pereira da Silva, tem vindo a defender o abandono de uma Administração Publica autoritária. Como salienta o Sr. Professor, o poder de execução forcada não está presente em todos os atos administrativos, visto que em regra, é necessário a existência de um ato prévio que legitime a atuação coativa da administração pública. Em segundo lugar, a vertente autoritária do ato administrativo é posta em causa pelo surgimento de uma Administração prestadora de serviços e infraestruturas, onde as decisões administrativas têm mais em conta o Interesse Público, do que a imposição da vontade administrativa aos cidadãos. Todos estes aspetos revelam que o ato administrativo não é, nem pode ser, uma “manifestação de um poder que se limita a agredir de forma egoísta e unilateral dos direitos dos particulares”[3]. ´

Com efeito, o antigo art. 149.º nº 2 consagrava o Princípio da execução prévia dos atos administrativos. Segundo o corpo desta norma, as decisões administrativas eram executórias por si só, podendo ser impostas coercivamente aos particulares, pela administração, sem necessidade de um recurso prévio ao poder judicial. Esse preceito legal constituía uma espécie de habilitação genérica para a definição unilateral pela administração pública, sem cobertura judicial prévia, do direito para determinada situação jurídica concreta.

Ora com a aprovação do novo CPA, denota-se uma clara propensão para um modelo de administração judiciária. Como refere o preâmbulo do presente diploma, uma das inovações  é a consagração do princípio de que a execução coerciva dos atos administrativos só pode ser realizada pela Administração nos casos expressamente previstos na lei ou em situações de urgente necessidade pública, devidamente fundamentada ( artigo 176.º)”. Assim, a Administração Pública vê diminuída a discricionariedade do seu poder de autotutela executiva, ficando esta apenas reconduzida às situações previstas nos casos expressamente previstos na lei (princípio da legalidade previsto no art. 3.º CPA) ou em casos de urgente necessidade pública, devidamente fundamentada. Fora destes casos, a administração terá que recorrer aos tribunais de forma a obter um título legítimo para a sua atuação, conforme o art. 183.º CPA. Consequentemente, como aponta o nº2 do art. 8.º do Decreto-Lei nº4/2015 de 7 de Janeiro, as situações em que a Administração pode praticar atos administrativos impostos ficam sujeitas à aprovação de um diploma legal que defina os casos, as formas e os termos em que a administração pode atuar na vertente de autotutela executiva.

Esta opção legislativa, segundo o Professor Mário Aroso de Almeida, expressa o princípio da legalidade, conjugando este com a necessidade de resposta a situações urgentes de necessidade pública. Tecendo um elogio a esta revolução administrativa, baseada no ordenamento Francês, este douto autor refere que o novo CPA visa definir os pressupostos de atuação da Administração Pública relativamente à pratica de atos materiais de execução coativa, de acordo com um principio fundamental de toda a atuação administrativa, o Princípio da Legalidade. Tal fundamento encontra-se no Estado de Direito (artigo 2.º CRP), visto que qualquer atuação da Administração tem de resultar de uma norma de competência que configure os poderes de ação do poder administrativo no caso concreto.
Conforme o que foi referido, só quando a administração obtiver um título executivo judicial é que poderá usar a força para obrigar a realização do ato devido. Denota-se assim, uma administração paritária, isto é, o balanço entre o efeito pretendido pelo Administração e o objetado pelo particular.

No entanto, a aplicação do novo regime gera alguma controvérsia. Primeiramente, como refere o Professor Paulo Otero, poderá pôr-se em causa a constitucionalidade do regime. Tal como prevê o CPA, o novo regime fica sujeito a uma lei, a ser publicada no prazo de 60 dias, de forma a definir quais os critérios do privilégio de execução prévia da administração. Porém, já transitados dois anos desde a publicação do CPA de 2015 e a lei nem vê-la.
Levanta-se assim um questão conturbada. A aplicação do regime transitório poderá ser considerada inconstitucional. Verificou-se a pressa do legislador na mudança já solicitada pela doutrina, esquecendo-se que a lei de autorização legislativa não contempla o regime provisório indicado no art.6.º e 8.º nº2 do diploma preambular que aprova o CPA. Logo, fica suspenso o regime de execução do ato.
Suscita-se outra particularidade. Durante a pendência deste regime, não há legitimidade de atuação da Administração, uma vez que a administração rege-se pelo Principio da Legalidade, e não existindo uma norma de competência, todos os atos praticados estão ficam feridos de usurpação de poderes, o que conduz à nulidade. E subsequentemente, não há dever de obediência a atos nulos.
E mais, cria-se um verdadeiro impasse. Ora, a administração não pode aplicar as normas do regime regra, visto que, de momento, se encontra paralisada à espera da lei, no altar do novo código de processo administrativo. Ora, a aplicação das normas do regime transitório é inconstitucional e o particular pode oferecer resistência. Lá se vai o ius imperii da Administração, uma vez que está em causa a garantia de que cada um só possa fazer a administração quer, se houver titulo judicial.
Portanto, parece que se verifica uma repristinação de um regime anterior, que foi integralmente revogado, suspendendo-se desta forma uma das maiores autoproclamadas inovações administrativas do CPA em vigor. Não se compreende o eterno silêncio do legislador no respeitante a esta questão. Tanto mais porque se trata de uma matéria situada no cerne da relação jurídica administrativa, onde os particulares são afetados diariamente e, onde, em ultima instância, se poderá convocar a própria responsabilidade do Estado por omissão legislativa.

Portanto, na minha opinião, tentou-se batizar o direito administrativo e eliminar o pecado original da autotutela executiva, associada a uma Administração Autoritária, mas acabou por se verificar uma morte súbita da atuação administrativa, nomeadamente do privilégio de execução prévia.

BIBLIOGRAFIA

RUI GUERRA DA FONSECA, O fundamento da Autotutela Executiva da Administração Publica.

PEREIRA DA SILVA,VASCO, Em busca do Ato Administrativo.

AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Teoria Geral do Direito Administrativo, O novo regime do Código de Procedimento Administrativo, 3ª Edição, 2016, Almedina.
COMENTÁRIOS AO CPA, AAFDL




Trabalho Realizado por

Inês Lopes 

Nº 26710

[1] AROSO DE ALMEIDA, MÁRIO, Teoria Geral do Direito Administrativo, O novo regime do Código de Procedimento Administrativo, 3ª Edição, 2016, Almedina.
[2] RUI GUERRA DA FONSECA, O fundamento da Autotutela Executiva da Administração Publica.
[3] PEREIRA DA SILVA,VASCO, Em busca do Ato Administrativo.

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