Thursday, November 2, 2017

Direitos subjetivos e relação administrativa: o papel dos direitos fundamentais para a atualidade

Direitos subjetivos e relação administrativa: o papel dos direitos fundamentais para a atualidade


                                                                              
Cabe-nos atentar, numa primeira análise, à importância dos direitos subjetivos e no modo como estes se relacionam com a Administração Pública. Veja-se, antes de mais, que ao se falar de relação jurídica administrativa verificamos que esta se prende diretamente com os direitos subjetivos públicos: as relações jurídicas administrativas são em parte consequência dos diretos subjetivos, tal como afirma MAURER. Ora, é precisamente a explicitação dessa consequência que nos leva a uma das questões essenciais do objeto deste texto: é que o reconhecimento de direitos administrativos faz com que os indivíduos deixem de ser tratados como objeto de poder e passem a intervir com os órgãos de direito público. O reconhecimento da titularidade de direitos subjetivos perante as autoridades públicas é, aliás, um traço de maior importância na configuração do Estado de Direito: “põe em vigor a dignidade e a personalidade da pessoa constitucionalmente garantida” (MAURER).
Antes de se prosseguir a uma análise mais detalhada das implicações no direito administrativo do modo como este reconhecimento de direitos subjetivos se efetuou, é da maior importância atentar a diversas conceções quanto ao modo de conceber a posição dos indivíduos em relação à Administração. Estas podem ser configuradas como: 1) Uma mera situação de interesse de facto que confere aos indivíduos legitimidade processual, visto que detêm um interesse próximo do da Administração; 2) Um direito à legalidade, que os indivíduos fazem valer no processo; 3) Duas modalidades de posições jurídicas distintas: os direitos subjetivos e os interesses legítimos, consoante o poder de vantagem do indivíduo resulte imediata e intencionalmente das normas jurídicas, ou seja atribuído apenas de forma mediata e reflexa; 4) Igualmente duas modalidades de direitos subjetivos e de interesses legítimos mas que se distinguem, já não com base no carácter mediato ou imediato do modo de proteção pela norma, mas antes conforme se trate de uma situação dependente do poder administrativo ou não; 5) Os direitos subjetivos “clássicos” e os direitos subjetivos “novos”; 6) Uma única categoria de situações jurídicas dos particulares- a dos direitos subjetivos. No entendimento de BACHOF e de PEREIRA DA SILVA, deve somente proceder a última conceção, no sentido de que é esta a única capaz de se compatibilizar com a noção de Estado de Direito e de comportar as mais diversas posições jurídicas que se estabelecem com a Administração- posições jurídicas essas que “são verdadeiros direitos subjetivos, posições jurídicas de vantagem dos particulares em face das autoridades” (PEREIRA DA SILVA).
A teorização do direito subjetivo enquanto poder dos indivíduos sobre o Estado só veio a ser estabelecida no contexto de Estado Liberal, não sendo a conceção dominante à data. Note-se que era a conceção objetiva de direito subjetivo a que predominava, afirmando que os direitos subjetivos não mais eram do que um poder público, do qual resultavam benefícios para o particular- está subjacente a lógica autoritária da Administração agressiva, onde existiria um numero limitado de direitos dos indivíduos (OTTO MAYER).
Ora, o direito subjetivo público tal qual o pretendemos aqui abordar foi inicialmente teorizado por BUEHLER. O autor definia-o como uma posição jurídica do súbdito relativamente ao Estado que tem por base um negócio jurídico/vinculação emitida para proteção do interesse individual, por intermédio da qual ele se pode dirigir à Administração para exigir algo do Estado. Neste primeiro entendimento de BAUHLER, seriam necessárias três características para que estivesse em causa um direito subjetivo público: em primeiro lugar, a existência de uma norma vinculativa; de seguida, a intenção do legislador em proteger interesses individuais; por fim, a tutela jurisdicional da posição individual. É da maior importância considerarmos a formulação inicial do direito subjetivo público na doutrina de BAUHLER: é que este entendimento representou um notável avanço doutrinário relativamente às conceções que negavam a possibilidade de existência de um direito subjetivo público face à Administração ou que o objetivavam (contraste-se com a posição de MAYER).
Pese embora o contributo inquestionável de BAUHLER para o entendimento dos direitos subjetivos públicos, é BACHOF quem vai transformar o conceito de direito subjetivo. Falamos a este propósito de transformação, dado que afasta o alemão da noção de direito subjetiva a ideia de que por trás estaria sempre uma Administração autoritária. Vai, pois, BACHOF retomar as três condições de existência herdadas por BAUHLER, embora desta vez reformulando-as. Assim, em primeiro lugar, já não é decisivo tratar-se de uma norma vinculativa, mas sim uma norma que tenha um “dever de comportamento”; de seguida, alarga o autor as normas que considera estarem ao abrigo da proteção de interesses individuais- o indivíduo goza de um poder jurídico para a imposição dos seus interesses protegidos de forma jurídica; por último, a criação constitucional do recurso contencioso. Refira-se que a importância deste entendimento trazido por BACHOF vai muito para além da alteração do conceito de direito subjetivo público: “trata-se de alargar o âmbito de aplicação dos direitos privados, bem como o número de direitos considerados do indivíduo perante a Administração” (PEREIRA DA SILVA).
A que se deveu esta “transformação” do direito subjetivo, perguntamo-nos? Pois bem, este alargamento dos direitos subjetivos públicos foi realizado pela Doutrina e pela Jurisprudência. Refira-se a título de exemplo a afirmação pelo Tribunal Administrativo Federal alemão em 1945 de que os privados não “podiam ser mais considerados um mero objeto da atuação estadual”. Estava aberto o caminho para se alargarem os direitos subjetivos públicos a um novo tipo de Administração: uma Administração de Estado Social, profundamente reestruturada.
Esse caminho foi, porém, “traumático”, tal como sustenta PEREIRA DA SILVA. Explicite-se: esta nova realidade de alargamento dos direitos subjetivos dos particulares com a Administração tinha, tal como aqui explicitámos, sido formulada por BUEHLER. O seu entendimento (entenda-se por “teoria da norma de proteção”) apresentava-se em certo modo incompatível com o modelo de Estado Social: é que em muitas das novas situações em que estava em jogo a defesa dos particulares perante a Administração, não se podia dizer que as normas jurídicas aplicáveis tivessem sido elaboradas para proteger os interesses dos privados- elas limitavam-se somente a permitir a intervenção das autoridades. Esta trauma era, pois, de certo modo, consequência da ótica positivista de que fazia parte a inicial teoria da norma de proteção de BUEHLER.
O caminho percorrido para solucionar a questão vai caber, mais uma vez, à Jurisprudência alemã. As decisões dos tribunais de defesa dos direitos dos particulares perante a Administração começaram cada vez mais a ser sustentadas não com base em direito ordinário- que, como vimos, não o permitia- mas sim com base nos direitos fundamentais. Como não poderia deixar de ser, a reformulação do conceito de direito subjetivo publico com recurso nos direitos fundamentais implicou também uma reformulação da doutrina da norma de proteção. Destacamos uma vez mais a doutrina da norma de proteção pois é esta, hoje, a dominante na Alemanha e em Portugal, o que inevitavelmente se repercute no atual entendimento da relação dos particulares com a Administração.
Assim, em síntese, a doutrina da norma de proteção passou a recorrer aos direitos fundamentais para justificar os direitos subjetivos dos particulares perante a Administração- direitos fundamentais esses que tanto são utilizados como modo de interpretação e de integração de lacunas, como também para fundamentar de modo direto esses mesmos direitos. Passamos, então, a ter, de modo bastante sumário, o seguinte panorama no direito Administrativo: para além das pessoas a quem as normas de direito ordinário atribuem diretamente direitos subjetivos, mesmo que não sejam os imediatos destinatários da atuação administrativa, também os particulares lesados pela administração num seu direito fundamental (os “terceiros”) podem-se fazer valer desse seu direito subjetivo público perante a Administração. Conforme descreve W. KREBS, tal panorama obriga a considerar não apenas os interesses privados e os interesses gerais, mas também os interesses privados conflituantes entre si, o que conduz a um maior equilíbrio.
Concluindo, chega a hora de relacionar a influência deste paradigma do direito subjetivo público (apoiado pelos direitos fundamentais) com o atual Direito Administrativo, cabendo-nos fazer um breve apanhado das relações Administrativas atuais: estas já não são simplesmente bilaterais; invés, são multilaterais- implicam o envolvimento de diferentes indivíduos/particulares e autoridades administrativas.
Veja-se a, título de exemplo, o que se sucedeu com as relações de vizinhança. Nestas relações há uma intervenção quer do direito privado, quer do direito administrativo. No que diz respeito á intervenção do direito Administrativo, há uma demonstração da multilateralidade do atual direito Administrativo: este considera tanto os interesses dos sujeitos privados, como dos interesses públicos.  Atente-se ainda a outro exemplo que demonstra esta multilateralidade: as autorizações de construção por parte da Administração. Nestas, além da relação bilateral típica de pretensão do requerente da autorização, há também a questão de saber se o vizinho tem um direito de defesa, isto é, se este se vê afetado em alguma medida por uma eventual autorização de construção.
Parece-nos, por fim, relevante fazer uma brevíssima referência ao que sucedeu em Portugal com a transição para um regime democrático (no que respeita aos direitos subjetivos dos particulares na relação com a Administração). FREITAS DO AMARAL refere que a instituição de um regime democrático permitiu a “liberalização do sistema de garantias dos particulares contra os atos da administração”. Esta liberalização complementou-se, a título de exemplo, com a criação da figura do Provedor de justiça- o órgão de maior jurisdicionalização do Supremo Tribunal Administrativo-, com o dever de fundamentação dos atos administrativos e com o sistema de execução das sentenças dos tribunais administrativos.
Temos, com efeito, sob o ponto de vista económico, um Estado que cada vez mais condiciona a atividade dos particulares, mas que, por outro lado, se vê cada vez mais limitado pelas normas que defendem os direitos e interesses legítimos dos particulares contra os comportamentos ilegais ou injustos da Administração.







Bibliografia:

à PEREIRA DA SILVA, Vasco. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996.
à FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de direito administrativo. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016.
à REBELO DE SOUSA, Marcelo; MATOS, André Salgado. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais. 3ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008.



António Baltazar Mendes, Nº 57072, Turma B, Subturma 14.

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