Direitos
subjetivos e relação administrativa: o
papel dos direitos fundamentais para a atualidade
Cabe-nos atentar, numa primeira análise, à importância
dos direitos subjetivos e no modo como estes se relacionam com a Administração
Pública. Veja-se, antes de mais, que ao se falar de relação jurídica
administrativa verificamos que esta se prende diretamente com os direitos
subjetivos públicos: as relações jurídicas administrativas são em parte
consequência dos diretos subjetivos, tal como afirma MAURER. Ora, é
precisamente a explicitação dessa consequência que nos leva a uma das questões
essenciais do objeto deste texto: é que o reconhecimento de direitos
administrativos faz com que os indivíduos deixem de ser tratados como objeto de
poder e passem a intervir com os órgãos de direito público. O reconhecimento da
titularidade de direitos subjetivos perante as autoridades públicas é, aliás,
um traço de maior importância na configuração do Estado de Direito: “põe em
vigor a dignidade e a personalidade da pessoa constitucionalmente garantida”
(MAURER).
Antes de se prosseguir a uma análise mais
detalhada das implicações no direito administrativo do modo como este
reconhecimento de direitos subjetivos se efetuou, é da maior importância
atentar a diversas conceções quanto ao modo de conceber a posição dos indivíduos
em relação à Administração. Estas podem ser configuradas como: 1) Uma mera situação de interesse de
facto que confere aos indivíduos legitimidade processual, visto que detêm um
interesse próximo do da Administração; 2)
Um direito à legalidade, que os indivíduos fazem valer no processo; 3) Duas modalidades de posições jurídicas
distintas: os direitos subjetivos e os interesses legítimos, consoante o poder
de vantagem do indivíduo resulte imediata e intencionalmente das normas
jurídicas, ou seja atribuído apenas de forma mediata e reflexa; 4) Igualmente duas modalidades de
direitos subjetivos e de interesses legítimos mas que se distinguem, já não com
base no carácter mediato ou imediato do modo de proteção pela norma, mas antes
conforme se trate de uma situação dependente do poder administrativo ou não; 5) Os direitos subjetivos “clássicos” e
os direitos subjetivos “novos”; 6) Uma
única categoria de situações jurídicas dos particulares- a dos direitos
subjetivos. No entendimento de BACHOF e de PEREIRA DA SILVA, deve somente
proceder a última conceção, no sentido de que é esta a única capaz de se
compatibilizar com a noção de Estado de Direito e de comportar as mais diversas
posições jurídicas que se estabelecem com a Administração- posições jurídicas
essas que “são verdadeiros direitos subjetivos, posições jurídicas de vantagem
dos particulares em face das autoridades” (PEREIRA DA SILVA).
A teorização do direito subjetivo enquanto poder
dos indivíduos sobre o Estado só veio a ser estabelecida no contexto de Estado
Liberal, não sendo a conceção dominante à data. Note-se que era a conceção
objetiva de direito subjetivo a que predominava, afirmando que os direitos
subjetivos não mais eram do que um poder público, do qual resultavam benefícios
para o particular- está subjacente a lógica autoritária da Administração
agressiva, onde existiria um numero limitado de direitos dos indivíduos (OTTO
MAYER).
Ora, o direito subjetivo público tal qual o
pretendemos aqui abordar foi inicialmente teorizado por BUEHLER. O autor definia-o
como uma posição jurídica do súbdito relativamente ao Estado que tem por base
um negócio jurídico/vinculação emitida para proteção do interesse individual,
por intermédio da qual ele se pode dirigir à Administração para exigir algo do
Estado. Neste primeiro entendimento de BAUHLER, seriam necessárias três características
para que estivesse em causa um direito subjetivo público: em primeiro lugar, a
existência de uma norma vinculativa;
de seguida, a intenção do legislador em proteger interesses individuais; por fim, a tutela jurisdicional da
posição individual. É da maior importância considerarmos a formulação inicial
do direito subjetivo público na doutrina de BAUHLER: é que este entendimento
representou um notável avanço doutrinário relativamente às conceções que
negavam a possibilidade de existência de um direito subjetivo público face à
Administração ou que o objetivavam (contraste-se com a posição de MAYER).
Pese embora o contributo inquestionável de
BAUHLER para o entendimento dos direitos subjetivos públicos, é BACHOF quem vai
transformar o conceito de direito subjetivo. Falamos a este propósito de
transformação, dado que afasta o alemão da noção de direito subjetiva a ideia
de que por trás estaria sempre uma Administração autoritária. Vai, pois, BACHOF
retomar as três condições de existência herdadas por BAUHLER, embora desta vez
reformulando-as. Assim, em primeiro lugar, já não é decisivo tratar-se de uma
norma vinculativa, mas sim uma norma que tenha um “dever de comportamento”; de seguida, alarga o autor as normas
que considera estarem ao abrigo da proteção de interesses individuais- o indivíduo
goza de um poder jurídico para a imposição dos seus interesses protegidos de
forma jurídica; por último, a
criação constitucional do recurso contencioso. Refira-se que a importância
deste entendimento trazido por BACHOF vai muito para além da alteração do
conceito de direito subjetivo público: “trata-se de alargar o âmbito de
aplicação dos direitos privados, bem como o número de direitos considerados do
indivíduo perante a Administração” (PEREIRA DA SILVA).
A que se deveu esta “transformação” do direito
subjetivo, perguntamo-nos? Pois bem, este alargamento dos direitos subjetivos
públicos foi realizado pela Doutrina e pela Jurisprudência. Refira-se a título
de exemplo a afirmação pelo Tribunal Administrativo Federal alemão em 1945 de que
os privados não “podiam ser mais considerados um mero objeto da atuação
estadual”. Estava aberto o caminho para se alargarem os direitos subjetivos
públicos a um novo tipo de Administração: uma Administração de Estado Social, profundamente
reestruturada.
Esse caminho foi, porém, “traumático”, tal como sustenta
PEREIRA DA SILVA. Explicite-se: esta nova realidade de alargamento dos direitos
subjetivos dos particulares com a Administração tinha, tal como aqui
explicitámos, sido formulada por BUEHLER. O seu entendimento (entenda-se por
“teoria da norma de proteção”) apresentava-se em certo modo incompatível com o
modelo de Estado Social: é que em muitas das novas situações em que estava em
jogo a defesa dos particulares perante a Administração, não se podia dizer que
as normas jurídicas aplicáveis tivessem sido elaboradas para proteger os
interesses dos privados- elas limitavam-se somente a permitir a intervenção das
autoridades. Esta trauma era, pois, de certo modo, consequência da ótica
positivista de que fazia parte a inicial teoria da norma de proteção de
BUEHLER.
O caminho percorrido para solucionar a questão
vai caber, mais uma vez, à Jurisprudência alemã. As decisões dos tribunais de
defesa dos direitos dos particulares perante a Administração começaram cada vez
mais a ser sustentadas não com base em direito ordinário- que, como vimos, não
o permitia- mas sim com base nos direitos fundamentais. Como não poderia deixar
de ser, a reformulação do conceito de direito subjetivo publico com recurso nos
direitos fundamentais implicou também uma reformulação da doutrina da norma de
proteção. Destacamos uma vez mais a doutrina da norma de proteção pois é esta,
hoje, a dominante na Alemanha e em Portugal, o que inevitavelmente se repercute
no atual entendimento da relação dos particulares com a Administração.
Assim, em síntese, a doutrina da norma de
proteção passou a recorrer aos direitos fundamentais para justificar os direitos
subjetivos dos particulares perante a Administração- direitos fundamentais
esses que tanto são utilizados como modo de interpretação e de integração de
lacunas, como também para fundamentar de modo direto esses mesmos direitos.
Passamos, então, a ter, de modo bastante sumário, o seguinte panorama no
direito Administrativo: para além das pessoas a quem as normas de direito
ordinário atribuem diretamente direitos subjetivos, mesmo que não sejam os
imediatos destinatários da atuação administrativa, também os particulares
lesados pela administração num seu direito fundamental (os “terceiros”)
podem-se fazer valer desse seu direito subjetivo público perante a Administração.
Conforme descreve W. KREBS, tal panorama obriga a considerar não apenas os
interesses privados e os interesses gerais, mas também os interesses privados
conflituantes entre si, o que conduz a um maior equilíbrio.
Concluindo, chega a hora de relacionar a
influência deste paradigma do direito subjetivo público (apoiado pelos direitos
fundamentais) com o atual Direito Administrativo, cabendo-nos fazer um breve
apanhado das relações Administrativas atuais: estas já não são simplesmente
bilaterais; invés, são multilaterais-
implicam o envolvimento de diferentes indivíduos/particulares e autoridades
administrativas.
Veja-se a, título de exemplo, o que se sucedeu
com as relações de vizinhança. Nestas relações há uma intervenção quer do
direito privado, quer do direito administrativo. No que diz respeito á
intervenção do direito Administrativo, há uma demonstração da multilateralidade
do atual direito Administrativo: este considera tanto os interesses dos
sujeitos privados, como dos interesses públicos. Atente-se ainda a outro exemplo que demonstra
esta multilateralidade: as autorizações de construção por parte da
Administração. Nestas, além da relação bilateral típica de pretensão do
requerente da autorização, há também a questão de saber se o vizinho tem um
direito de defesa, isto é, se este se vê afetado em alguma medida por uma
eventual autorização de construção.
Parece-nos, por fim, relevante fazer uma
brevíssima referência ao que sucedeu em Portugal com a transição para um regime
democrático (no que respeita aos direitos subjetivos dos particulares na
relação com a Administração). FREITAS DO AMARAL refere que a instituição de um
regime democrático permitiu a “liberalização do sistema de garantias dos
particulares contra os atos da administração”. Esta liberalização
complementou-se, a título de exemplo, com a criação da figura do Provedor de
justiça- o órgão de maior jurisdicionalização do Supremo Tribunal
Administrativo-, com o dever de fundamentação dos atos administrativos e com o
sistema de execução das sentenças dos tribunais administrativos.
Temos, com efeito, sob o ponto de vista económico,
um Estado que cada vez mais condiciona a atividade dos particulares, mas que,
por outro lado, se vê cada vez mais limitado pelas normas que defendem os
direitos e interesses legítimos dos particulares contra os comportamentos
ilegais ou injustos da Administração.
Bibliografia:
à
PEREIRA DA SILVA, Vasco. Em busca do acto
administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996.
à
FREITAS DO AMARAL, Diogo. Curso de
direito administrativo. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2016.
à
REBELO DE SOUSA, Marcelo; MATOS, André Salgado. Direito administrativo geral: introdução e princípios fundamentais.
3ª ed. Lisboa: Dom Quixote, 2008.
António
Baltazar Mendes, Nº 57072, Turma B, Subturma 14.
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