Caro Dr. Sigmund Freud,
Escrevo-lhe na tentativa exacerbada de resolução de uma
patologia que me tem vindo a acompanhar ao longo da minha vasta vida. Chamo-me
Direito Administrativo, vivo em Portugal, mas considero-me um viajante do
Mundo.
Encontrando-me profundamente fascinado pela arte de qualquer
psicanálise que me salve, passo a evidenciar os períodos mais marcantes da
minha existência, que, eventualmente, possam ter levado a este meu triste fado.
Em primeiro lugar, e
mostrando desde já alguma tristeza, não fui merecedor de tamanha pompa e
circunstância política e social vivida aquando das épocas da Idade Média e do
Estado absoluto. Apenas coexisti. A Idade Média, muito marcada pelo papel
relevante da administração local e da Igreja, correspondeu a uma fase de
apagamento da administração estadual. A sociedade feudal, constituía-se
fantoche dos grandes senhorios que, sobrepostos ao Monarca e nem sempre com o
seu consentimento, tudo podiam e a pouco obedeciam. Aquando do período do
Estado absoluto, a fase do tão aclamado despotismo esclarecido, deu-se a clara
centralização e concentração dos poderes no monarca, um Deus mais iluminado do
que a própria divindade suprema. Tal como tivera acontecido nos primórdios da
nacionalidade, a separação de poderes era utopia desconhecida e as funções
legislativa, administrativa e jurisdicional não estavam organicamente
separadas. Tal como acontecera antes, os garantes dos particulares eram
nominais, precários e esvaziados pela existência da prerrogativa régia.
Mais tarde, na Europa espoletou-se, em 1789, a épica Revolução
francesa com direito a mortes de guilhotina em praça pública e a
revolucionários que tudo queriam conquistar, proclamando os ideais de liberdade,
igualdade e fraternidade. Em 1820, tinham finalmente chegado os princípios
enformadores do Estado liberal emergente da Revolução Francesa a Portugal. Com
o advento das constituições escritas (de 1822, 1826, 1838), deu-se a
consagração dos direitos políticos e civis dos cidadãos e a separação dos
poderes do Estado, nomeadamente entre os poderes administrativo e
jurisdicional. Contudo, e apesar da forte influência francesa que levaria à
mudança estruturada e necessária da administração pública, viviam-se, em
Portugal, conturbados períodos políticos, acompanhados da ausência de consenso
doutrinal relativamente à questão de controlo da administração, o que levou a
uma cíclica oscilação entre os modelos dos tribunais judiciais, dos tribunais
administrativos e do administrador juiz (entre 1846 e 1848), consequência da indiferenciação
entre as funções de administrar e julgar. Tal órgão visava a criação de um
corpo meio administrativo, meio judiciário, ou seja, de um corpo em que se
registasse uma fusão harmoniosa entre o espírito da administração e o sentido
da justiça. Neste contexto, a distinção entre órgãos da administração ativa e
consultiva era incontornável. A estes “administradores-juízes” ficava atribuída
a tarefa de julgar os litígios entre particulares e administração, embora,
apenas, pudessem emitir poderes sujeitos a homologação do Chefe de Estado.
Assim, durante o liberalismo oitocentista, o essencial da influência francesa
traduziu-se na importação do sistema de administração executiva com os seus
traços do estatuto de privilégio da administração pública e da precariedade na
defesa dos direitos dos particulares. Em Portugal, a centralização administrativa
de feição napoleónica viria a afirmar-se, em primeiro lugar, através da
uniformização artificial dos estatutos das autarquias locais e depois, mediante
o seu controlo acrescido por parte do Estado, o que se pode entender pelo facto
de em 1836, o governo de Passos Manuel, ter extinguido, por decreto, 498
municípios de uma só vez.
Mais tarde, a 1ª Republica, não se afastou dos traços do
Estado liberal, destacando-se a crescente, ainda que lenta, amplificação da
função e centralização administrativas, bem como, a insuficiência das garantias dos particulares
a que se juntou uma crónica instabilidade político constitucional.
Foi no período do Estado Novo, constitucionalizado em 1933,
que se condicionou a função administrativa e a administração pública por mais
de 40 anos, consagrando-se, pela primeira vez, em Portugal, um Estado social.
Existia, nessa época, uma administração pública de caráter autoritário em
função do regime ditatorial vigente, acompanhado de um alargamento da administração
prestaciona, mercê da existência de um estado dirigista que se socorria da
estrutura corporativa e dos organismos de coordenação económica. Contudo,
algumas das características da função administrativa corresponderam ao
aproveitamento e aprofundamento de características autoritárias já insinuadas
no estado liberal como o esbatimento das fronteiras entre legislação e administração
e entre administração e jurisdição, devido à assunção de poderes legislativos
pelo Governo e desvalorização radical do Parlamento, sendo que ainda subsistiam
os tribunais administrativos integrados na administração (reinstaurarão em
1930, com a recriação definitiva do STA em 1933). De tudo isto, resultou uma
deficiência genérica das garantias dos particulares traduzidas na escassez dos
meios processuais, limitada impugnabilidade dos atos administrativos e no
carater restrito do processo de execução de sentenças contra órgãos do Estado.
Esta situação reverteu-se, ainda que modo relativo, na década de 50 do sec XX.,
dada a forcada abertura da economia portuguesa que acabou por restringir alguns
traços da intervenção do Estado na sociedade, sendo que persistiram as demais
características, apenas com ligeiras inovações na descentralização do Ultramar
e na demarcação das funções do Estado e do alargamento das garantia dos
particulares, sobretudo a partir da revisão constitucional de 1971.
Já a Revolução de Abril de 1974, acompanhada pela Constituição
de 1976, introduziram, um Estado de Direito Democrático acompanhado por um
regime económico de transição para o socialismo. O primeiro trouxe a definitiva
autonomização da função administrativa em relação às restantes funções do estado
e a consequente jurisdicionalização dos tribunais administrativos, o reforço
das garantias dos particulares, a regionalização politico administrativa dos
acores e da madeira e a proclamação da descentralização e desconcentração
administrativa. O segundo implicou as nacionalizações e as expropriações das
quais resultou a extensão muito significativa da administração em sentido
orgânico, que ficou a caminho daquilo que seria um Estado-providência e daquilo
que se esperaria de um Estado Socialista, embora com um atraso de quase uma década
do apogeu do Estado providencia na maioria das democracias europeias. Contudo,
a integração de Portugal nas Comunidades Europeias a partir de 1985 acelerou a
falência da transição para o socialismo, visível desde 1977-1980 e a revisão
constitucional de 1982 e evidenciou a crise do providencialismo estadual. A
institucionalização de um estado de direito democrático e as vicissitudes que o
rodearam ao longo de 25 anos traduziram-se numa crise da administração publica,
sujeita a inflexões de regime jurídico e a alterações estatutárias.
Atualmente, os traços mais relevantes do regime
administrativo português serão: primeiramente, o Estado coletividade, um Estado
Social de Direito (ou estado democrático de direito, na expressão do artº2CRP).
É um estado de direito na medida em que atende à primazia dos direitos,
liberdades e garantias, consagra a separação de poderes e os princípios da
constitucionalidade e legalidade da atuação do poder politico do Estado. É um
Estado social, porque o regime politico democrático converge com um regime
económico capitalista, visando corrigir assimetrias ou desigualdades no
exercício dos direitos económicos, sociais e culturais. A amplitude da administração
publica tem conhecido variações desde o modelo coletivista pós-revolucionário
até ao movimento, atualmente, ainda em curso, de privatização de entidades e
atividades até durante muito tempo exclusivamente concebidas como
exclusivamente administrativas. O Estado português é também um estado unitário
regional periférico (arts 6º, 288º CRP), existindo regiões periféricas com
autonomia administrativa, politica e legislativa, o que se concretiza com a
existência e estrutura das administrações públicas regionais dos Açores e da Madeira.
Para além dessa característica, note-se que o sistema de governo português é
semipresidencial, o que determina que a administração pública estadual depende
do Governo e não do Presidente da República, respondendo o Governo pela sua
atuação administrativa perante a Assembleia da República e, mais, limitadamente,
perante o Presidente da Republica. (arts 190ºCRP). Outro atributo do sistema
administrativo português, prende-se com o sistema de partidos vigente que tende
para um multipartidarismo rígido, conduzindo a politização e partidarização da administração
publica, sendo que os partidos políticos recorrem à administração publica para
empregar pessoal cujas contratações não têm meios. Isto levou a criação de
clientelas partidárias em que as chefias sofrem uma rotação dependente da
mudança do Governo. Por fim, o regime administrativo português atual incorpora,
também, princípios fundamentais para a prossecução do bem comum, para a
proteção de todos os cidadãos, ainda que, um pouco mitigado na sua execução.
Concluindo, aqui fica desta alma velha que continua a
evoluir, ainda que com cicatrizes profundas de um passado negro perpetuado pela
Historia da Humanidade, o testemunho de luta que ainda perdura, no sentido de
me tornar a mim, não só idílico na teorização, mas também, pleno na execução
prática.
Cordialmente,
Direito Administrativo.
Bibliografia:
FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo,
Vol I, 4ª ed., 2015, Almedina;
MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGDO DE MATOS, Direito
Administrativo Geral, Tomo I, D. Quixote, Lisboa, Introdução e Princípios
Fundamentais, 3ª edição, Dom Quixote, 2004.
Rita Patrício, nº56701
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