Friday, November 3, 2017

Caro Dr. Sigmund Freud,
Escrevo-lhe na tentativa exacerbada de resolução de uma patologia que me tem vindo a acompanhar ao longo da minha vasta vida. Chamo-me Direito Administrativo, vivo em Portugal, mas considero-me um viajante do Mundo.
Encontrando-me profundamente fascinado pela arte de qualquer psicanálise que me salve, passo a evidenciar os períodos mais marcantes da minha existência, que, eventualmente, possam ter levado a este meu triste fado.

 Em primeiro lugar, e mostrando desde já alguma tristeza, não fui merecedor de tamanha pompa e circunstância política e social vivida aquando das épocas da Idade Média e do Estado absoluto. Apenas coexisti. A Idade Média, muito marcada pelo papel relevante da administração local e da Igreja, correspondeu a uma fase de apagamento da administração estadual. A sociedade feudal, constituía-se fantoche dos grandes senhorios que, sobrepostos ao Monarca e nem sempre com o seu consentimento, tudo podiam e a pouco obedeciam. Aquando do período do Estado absoluto, a fase do tão aclamado despotismo esclarecido, deu-se a clara centralização e concentração dos poderes no monarca, um Deus mais iluminado do que a própria divindade suprema. Tal como tivera acontecido nos primórdios da nacionalidade, a separação de poderes era utopia desconhecida e as funções legislativa, administrativa e jurisdicional não estavam organicamente separadas. Tal como acontecera antes, os garantes dos particulares eram nominais, precários e esvaziados pela existência da prerrogativa régia.

Mais tarde, na Europa espoletou-se, em 1789, a épica Revolução francesa com direito a mortes de guilhotina em praça pública e a revolucionários que tudo queriam conquistar, proclamando os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em 1820, tinham finalmente chegado os princípios enformadores do Estado liberal emergente da Revolução Francesa a Portugal. Com o advento das constituições escritas (de 1822, 1826, 1838), deu-se a consagração dos direitos políticos e civis dos cidadãos e a separação dos poderes do Estado, nomeadamente entre os poderes administrativo e jurisdicional. Contudo, e apesar da forte influência francesa que levaria à mudança estruturada e necessária da administração pública, viviam-se, em Portugal, conturbados períodos políticos, acompanhados da ausência de consenso doutrinal relativamente à questão de controlo da administração, o que levou a uma cíclica oscilação entre os modelos dos tribunais judiciais, dos tribunais administrativos e do administrador juiz (entre 1846 e 1848), consequência da indiferenciação entre as funções de administrar e julgar. Tal órgão visava a criação de um corpo meio administrativo, meio judiciário, ou seja, de um corpo em que se registasse uma fusão harmoniosa entre o espírito da administração e o sentido da justiça. Neste contexto, a distinção entre órgãos da administração ativa e consultiva era incontornável. A estes “administradores-juízes” ficava atribuída a tarefa de julgar os litígios entre particulares e administração, embora, apenas, pudessem emitir poderes sujeitos a homologação do Chefe de Estado. Assim, durante o liberalismo oitocentista, o essencial da influência francesa traduziu-se na importação do sistema de administração executiva com os seus traços do estatuto de privilégio da administração pública e da precariedade na defesa dos direitos dos particulares. Em Portugal, a centralização administrativa de feição napoleónica viria a afirmar-se, em primeiro lugar, através da uniformização artificial dos estatutos das autarquias locais e depois, mediante o seu controlo acrescido por parte do Estado, o que se pode entender pelo facto de em 1836, o governo de Passos Manuel, ter extinguido, por decreto, 498 municípios de uma só vez.

Mais tarde, a 1ª Republica, não se afastou dos traços do Estado liberal, destacando-se a crescente, ainda que lenta, amplificação da função e centralização administrativas, bem como,  a insuficiência das garantias dos particulares a que se juntou uma crónica instabilidade político constitucional.

Foi no período do Estado Novo, constitucionalizado em 1933, que se condicionou a função administrativa e a administração pública por mais de 40 anos, consagrando-se, pela primeira vez, em Portugal, um Estado social. Existia, nessa época, uma administração pública de caráter autoritário em função do regime ditatorial vigente, acompanhado de um alargamento da administração prestaciona, mercê da existência de um estado dirigista que se socorria da estrutura corporativa e dos organismos de coordenação económica. Contudo, algumas das características da função administrativa corresponderam ao aproveitamento e aprofundamento de características autoritárias já insinuadas no estado liberal como o esbatimento das fronteiras entre legislação e administração e entre administração e jurisdição, devido à assunção de poderes legislativos pelo Governo e desvalorização radical do Parlamento, sendo que ainda subsistiam os tribunais administrativos integrados na administração (reinstaurarão em 1930, com a recriação definitiva do STA em 1933). De tudo isto, resultou uma deficiência genérica das garantias dos particulares traduzidas na escassez dos meios processuais, limitada impugnabilidade dos atos administrativos e no carater restrito do processo de execução de sentenças contra órgãos do Estado. Esta situação reverteu-se, ainda que modo relativo, na década de 50 do sec XX., dada a forcada abertura da economia portuguesa que acabou por restringir alguns traços da intervenção do Estado na sociedade, sendo que persistiram as demais características, apenas com ligeiras inovações na descentralização do Ultramar e na demarcação das funções do Estado e do alargamento das garantia dos particulares, sobretudo a partir da revisão constitucional de 1971.

Já a Revolução de Abril de 1974, acompanhada pela Constituição de 1976, introduziram, um Estado de Direito Democrático acompanhado por um regime económico de transição para o socialismo. O primeiro trouxe a definitiva autonomização da função administrativa em relação às restantes funções do estado e a consequente jurisdicionalização dos tribunais administrativos, o reforço das garantias dos particulares, a regionalização politico administrativa dos acores e da madeira e a proclamação da descentralização e desconcentração administrativa. O segundo implicou as nacionalizações e as expropriações das quais resultou a extensão muito significativa da administração em sentido orgânico, que ficou a caminho daquilo que seria um Estado-providência e daquilo que se esperaria de um Estado Socialista, embora com um atraso de quase uma década do apogeu do Estado providencia na maioria das democracias europeias. Contudo, a integração de Portugal nas Comunidades Europeias a partir de 1985 acelerou a falência da transição para o socialismo, visível desde 1977-1980 e a revisão constitucional de 1982 e evidenciou a crise do providencialismo estadual. A institucionalização de um estado de direito democrático e as vicissitudes que o rodearam ao longo de 25 anos traduziram-se numa crise da administração publica, sujeita a inflexões de regime jurídico e a alterações estatutárias.

Atualmente, os traços mais relevantes do regime administrativo português serão: primeiramente, o Estado coletividade, um Estado Social de Direito (ou estado democrático de direito, na expressão do artº2CRP). É um estado de direito na medida em que atende à primazia dos direitos, liberdades e garantias, consagra a separação de poderes e os princípios da constitucionalidade e legalidade da atuação do poder politico do Estado. É um Estado social, porque o regime politico democrático converge com um regime económico capitalista, visando corrigir assimetrias ou desigualdades no exercício dos direitos económicos, sociais e culturais. A amplitude da administração publica tem conhecido variações desde o modelo coletivista pós-revolucionário até ao movimento, atualmente, ainda em curso, de privatização de entidades e atividades até durante muito tempo exclusivamente concebidas como exclusivamente administrativas. O Estado português é também um estado unitário regional periférico (arts 6º, 288º CRP), existindo regiões periféricas com autonomia administrativa, politica e legislativa, o que se concretiza com a existência e estrutura das administrações públicas regionais dos Açores e da Madeira. Para além dessa característica, note-se que o sistema de governo português é semipresidencial, o que determina que a administração pública estadual depende do Governo e não do Presidente da República, respondendo o Governo pela sua atuação administrativa perante a Assembleia da República e, mais, limitadamente, perante o Presidente da Republica. (arts 190ºCRP). Outro atributo do sistema administrativo português, prende-se com o sistema de partidos vigente que tende para um multipartidarismo rígido, conduzindo a politização e partidarização da administração publica, sendo que os partidos políticos recorrem à administração publica para empregar pessoal cujas contratações não têm meios. Isto levou a criação de clientelas partidárias em que as chefias sofrem uma rotação dependente da mudança do Governo. Por fim, o regime administrativo português atual incorpora, também, princípios fundamentais para a prossecução do bem comum, para a proteção de todos os cidadãos, ainda que, um pouco mitigado na sua execução.

Concluindo, aqui fica desta alma velha que continua a evoluir, ainda que com cicatrizes profundas de um passado negro perpetuado pela Historia da Humanidade, o testemunho de luta que ainda perdura, no sentido de me tornar a mim, não só idílico na teorização, mas também, pleno na execução prática.

Cordialmente,
Direito Administrativo.



Bibliografia:

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol I, 4ª ed., 2015, Almedina;
MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGDO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, D. Quixote, Lisboa, Introdução e Princípios Fundamentais, 3ª edição, Dom Quixote, 2004.

Rita Patrício, nº56701

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