Tuesday, May 1, 2018


Um “Quis custodiet ipsos custodes?”[1] à Administração Pública Portuguesa

I
Não obstante o prestígio da borcado latino, desde já advertir que talvez a expressão mais adequada a este texto fosse uma não conotada com um quem, mas sim com um como. Como é que os guardas são guardados ?
Esta é uma sucinta análise daquele que pode ser um dos mais relevantes, complexos e volúveis conceitos no que toca à competência da Administração Pública: o poder discricionário. Por fim, examinar da sua aplicação prática, através do acórdão 01459/06, proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, a 16 de março de 2006.

1. – A descrição da discricionariedade

            Recorrendo a outra expressão - esta ainda mais sonante e com mais profundas ramificações jurídicas - poderíamos adiantar que aqui se “dá a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A lei vem regular de diferentes maneiras os diferentes tipos de atuação da Administração, no que toca ao grau de liberdade de escolha que lhe é consentido, face ao caso concreto. A distinção é feita através dos conceitos de vinculatividade e de discricionariedade. Através deles, “a regulamentação legal da atividade administrativa umas vezes é precisa, outras vezes é imprecisa”.[2]
A vinculatividade permite à lei vincular a ação administrativa à decisão final. São estes os casos onde a lei baliza a atuação administrativa de forma minuciosa, ficando assim regulados, por lei, todos e cada um dos aspetos dentro do campo de ação da Administração. Esta vê assim o seu livre-arbítrio ser substituído pelo pré-determinismo da lei. Já a discricionariedade permite à Administração ter descrição para que, dentro das hipóteses dadas pela lei, escolher como agir. Nestes casos a lei concede que haja espaço para que a atuação administrativa fique subordinada à veneta da própria Administração. A lei opta pelo silêncio, concedendo-lhe uma margem de autonomia face às decisões que esta tem de tomar. No ordenamento jurídico administrativo a discricionariedade passa assim a ser tida como um corolário de uma certa liberdade de escolha.
            Outra questão é a de tentar perceber porque foi a liberdade de atuação da Administração arquitetada neste sistema dicotômico. À luz do princípio da legalidade não deveriam todos os campos de ação da Administração estar previamente, e de forma minuciosa, regulados por lei ?
            Em resposta a esta problemática, pode começar por ser dito que, de um ponto de vista prático e logístico, isso se revela pura e simplesmente impossível. Há casos de natureza lógica, mecânica e dedutiva, que permitem ser regulados por lei de forma cirurgicamente detalhada. Mas o quotidiano jurídico é pródigo na arte do improviso e por isso as ramificações de casos fisicamente imprevisíveis são infinitas. Sendo estes a maioria de casos com que a Administração se depara, essa forma de previsão milimétrica revela-se impraticável. Depois disto, pode ainda ser argumentado que uma conduta condicionada de forma tão forte, com decisões quase que pré-fabricadas, pode ser atentatória à necessidade de justiça equitativa no caso concreto.

1.1. – Divergências doutrinárias

                Apesar de não caber aqui tomar posições pessoais, cabe sim, como exercício intelectual e acadêmico, examinar aquilo que entre nós é defendido doutrinariamente. No quadro da doutrina portuguesa, há basicamente quatro posições fundamentais á cerca da distinção entre poder discricionário e poder vinculado.

Primeiramente, temos uma construção tradicional, clássica, defendida entre nós por Marcello Caetano. Na sua doutrina, o poder discricionário é um poder à margem da lei e do princípio da legalidade, o que significa que o poder discricionário não pode ser jurisdicionalmente controlado. Assim, o ato administrativo é visto e classificado como discricionário ou vinculado, em função da existência ou não da liberdade de decisão da Administração. Nesta lógica, o ato é da responsabilidade exclusiva da administração e não pode ser controlado pelo tribunal, se for um ato discricionário.  Já se for um ato vinculado, pode estar sujeito a controlo jurisdicional.

Depois desta há a construção de Freitas do Amaral. Aqui coloca-se em causa a distinção entre atos vinculados e atos discricionários, dizendo que é preciso catalogar olhando para os poderes que estão em causa no próprio ato. Como estes podem exercer simultaneamente poderes vinculados e poderes discricionários, nunca se pode simplesmente dizer que um ato é totalmente discricionário ou totalmente vinculado. Não existem atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários, devendo estes ser caracterizados pelo poder que predominantemente os preencher. Como consequência, os tribunais podem controlar os aspetos vinculados do exercício dos respetivos poderes, não podendo interferir no domínio dos poderes discricionários.

            No terceiro posicionamento, temos a opinião que Sérvulo Correia defendeu na sua tese de doutoramento. Esta doutrina vem acrescentar uma distinção entre duas espécies de discricionariedade. Há uma margem de livre decisão e uma margem de livre apreciação, correspondendo precisamente a dois momentos diferentes, sendo que em ambos a Administração está dotada de liberdade de ação.

Há ainda uma última posição, correspondendo à do pensamento de Vasco Pereira da Silva. Na sua perspetiva, a Administração pratica sempre decisões jurídicas que se definem pela necessidade de concretizar o ordenamento jurídico no caso concreto. Nenhuma decisão é verdadeiramente livre. Não há diferença entre a margem de livre decisão e a margem de livre apreciação. A questão que se coloca é exatamente a mesma, de uma escolha da administração, balizada pelos mesmos critérios, independentemente do tipo de ato. Defende ainda que a primeira coisa que a administração vai fazer, colocada perante uma situação que exige um ato administrativo, é interpretar a norma. E daqui parte uma realidade integrada, sucedida pela apreciação e depois pela decisão, sendo que todos os três momentos estão igualmente limitados por aspetos de “discricionariedade vinculada”, segundo a lei.

2. – A historicidade da discricionariedade

            Nas palavras de Freitas do Amaral, toda a evolução histórica do conceito de discricionariedade fica marcada “pelo progresso constante da ideia de subordinação do poder discricionário da Administração a limites legais, e ao controlo jurisdicional do respeito por esses limites.”[3] Ainda sob o advento do Estado de polícia o poder administrativo caracteriza-se por ser totalmente discricionário. A lei não fundamenta nem limita a sua atuação, não tem força ou relevância. Passamos para uma segunda fase, onde o poder administrativo fica totalmente subordinado ao poder arbitrário do Monarca e de todos aqueles que com ele o exercem. Todo o sistema está orquestrado para agir de acordo com a vontade soberana do monarca, não existindo sequer controlo jurisdicional às suas decisões. Para inverter esta situação surge o princípio da legalidade, como limitação ao poder régio. Em 1850, surge um limite jurisdicional à autoridade dos atos da Administração dizendo que estes não podem cair nem em incompetência nem em excesso de poder. Outro marco a assinalar é o surgimento do primeiro Código Administrativo, em 1896. Este prima pela sua inovação em matéria de proteção dos direitos e interesses dos particulares e pelo seu reforço da vinculação da Administração à lei. Em 1930, temos o surgimento na noção de desvio de poder, ainda hoje relevante. Este passa a ser definido como “o exercício de faculdades discricionárias fora do seu objeto e fim”[4]. Ou seja, passa assim a ser visto como uma ilegalidade o exercício do poder discricionário para um fim diferente daquele que é o fim legal para que foi configurado. Daqui, até aos dias de hoje - nas palavras de Freitas do Amaral - o poder discricionário tem sido “legalizado” e “domesticado”, passando assim a estar cada vez mais sujeito à fundamento e às limitações da lei, ao controlo jurisdicional dos tribunais administrativos, sob tutela constitucional.

3. – A extremidade da discricionariedade

            Por mais livre que seja a liberdade de decisão da Administração, nunca deixará de estar submetida a limites e restrições impostas por todo o bloco de legalidade do ordenamento. Alguns exemplos já foram acima referidos. A sua obrigação em respeitar as singularidades do caso concreto; a sua impossibilidade legal em extrapolar para situações de incompetência, excesso ou desvio de poder.

Primeiro que tudo, a atuação administrativa tem de ter sempre fundamento na lei. Só existe se a lei lhe permitir existir e só existe na forma como a lei configurar a sua existência. A sua conduta só pode levar ao único fim que o ordenamento permite atingir, face àquele caso concreto. Parece óbvio que só lhe é permitido fazer escolhas se a lei lhe atribuir, não só as respetivas hipóteses de decisão, como o próprio poder de decidir. Aqui o ordenamento admite que das diferentes escolhas da Administração resultem diferentes resultados. Depois, no plano material está ainda sujeita a vários princípios, da boa fé, da igualdade, da proporcionalidade e da imparcialidade – sendo a sua mera menção suficiente uma vez que já foram abordados aqui em sede. Dar ainda especial destaque ao princípio da boa administração, e da persecução do interesse público.

 A discricionariedade não será tanto uma liberdade pura, mas antes um poder-dever jurídico. A discricionariedade não equivale a uma livre escolha entre várias soluções legalmente possíveis. Equivale, antes, à obrigação de escolher a solução mais acertada. A Administração está sempre obrigada à busca da solução que seja, não só a mais adequada ao caso concreto, não só a que respeite sempre a competência e o fim legal, mais ainda a que melhor satisfaça o interesse público. Sendo que se encontra sempre sujeita a controlo judicial, de mérito e de legalidade. O poder discricionário não confere à Administração mais liberdade de ação, confere-lhe sim um mais exigente grau de responsabilidade e subordinação, face ao ordenamento jurídico.

II
            Dito isto, crê-se que já há condições para se passar a uma breve análise do acórdão 01459/06. Deste já se faz a ressalva de que nesta curta apreciação não cabe um minucioso aprofundar do mesmo. Esta tem como principal objetivo ajudar a consolidar este entrosamento do poder discricionário, sobretudo através da sua transferência para o plano da aplicação prática. E fica aqui assim, em traços largos, o curto resumo de uma das infinitas problemáticas que podem ser suscitadas pela aplicação do poder discricionário.

1. – O Acórdão 01459/06

            É da maior relevância – e praticamente suficiente - para esta análise ver que, na sentença, o tribunal subscreve à definição de discricionariedade dada por Marcelo Rebelo de Sousa[5]. O acórdão chega a cita que “pode haver mais do que uma solução administrativa para prosseguir um certo interesse público concreto – quer quanto ao conteúdo, quer quanto ao objecto, quer quanto à forma. Ponto é que o legislador tenha querido atribuir a liberdade de escolha à Administração Pública e que o exercício dessa liberdade não colida com qualquer outro princípio norteador da atividade administrativa. Não se nos afigura, por isso, legítimo ao Tribunal encarregado de controlar a legalidade de um ato de administração ir ao ponto de definir – nos casos em que a lei quis atribuir discricionariedade – um conteúdo, um objecto ou uma forma únicos compatíveis com o fim a prosseguir, e, em função deles, apreciar o ato em questão. Isso representaria admitir que o Tribunal se pudesse substituir sempre à Administração Pública no traçado de todos os elementos do ato por ela praticado. O que põe em causa a lei – que quis dar à Administração Pública uma liberdade de escolha – assim negada.”
            A problemática sobre a qual versa o acórdão enquadra-se na linha do acima abordado. No caso em apreço, o Tribunal questiona ainda, ao citar Bernardo Diniz de Ayala[6], “até onde devem e até onde podem os tribunais controlar a atividade administrativa para que a Administração possa atuar – dentro dos limites da lei e tendo em vista a realização de fins de interesse público – de acordo com os seus próprios critérios ?. Em bom rigor, a regra básica e visto o problema em abstrato é de fácil formulação: a margem de livre decisão qua tale é insusceptível de controlo judicial porque respeita ao mérito, à conveniência ou à oportunidade da administração; pelo contrário, tudo o que se situar fora dessa esfera é judicialmente sindicável porque estará em causa a validade da conduta administrativa (e nesse domínio já não há livre decisão mas sim vinculação)”.
            Em duas palavras, versa o acórdão sobre uma disputa onde é suscita a eventual ilegalidade do facto de o poder judicial se ter tentado substituir ao poder administrativo. A situação agrava-se ainda mais, pois ocorre em matéria a que tinha previamente sido atribuída competência à Administração para decidir. Surge ainda a questão de saber se, no caso concreto, o controlo da decisão cabe aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos. O tribunal acaba por proferir no sentido da ilegalidade e na impossibilidade de a decisão administrativa ser anulada ou substituída.

Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2016
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lex, 1999

André Pereira
Nº57339




[1] Expressão em latim que remonta a As Sátias, do poeta romano Juvenal, na transição do século I para o século II. Com tradução no sentido de “Quem guarda os guardas ?”, teve posteriormente várias ramificações jurídicas, principalmente em matéria de Direito Constitucional
[2] V. AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 66
[3] V. AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, p. 78
[4] V. Decreto nº18 017, de 28 de fevereiro, 1930
[5] V. Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lex, 1999, págs. 107/108
[6] Bernardo Diniz de Ayala, O (défice) de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 83

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