Um “Quis
custodiet ipsos custodes?”[1]
à Administração Pública Portuguesa
I
Não
obstante o prestígio da borcado latino, desde já advertir que talvez a expressão mais adequada a este
texto fosse uma não conotada com um quem,
mas sim com um como. Como é que os guardas são guardados ?
Esta
é uma sucinta análise daquele que pode ser um dos mais relevantes, complexos e
volúveis conceitos no que toca à competência da Administração Pública: o poder
discricionário. Por fim, examinar da sua aplicação prática, através do acórdão 01459/06,
proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, a 16 de março de 2006.
1.
– A descrição da discricionariedade
Recorrendo a outra expressão - esta ainda mais sonante
e com mais profundas ramificações jurídicas - poderíamos adiantar que aqui se
“dá a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A lei vem regular de
diferentes maneiras os diferentes tipos de atuação da Administração, no que
toca ao grau de liberdade de escolha que lhe é consentido, face ao caso
concreto. A distinção é feita através dos conceitos de vinculatividade e de discricionariedade.
Através deles, “a regulamentação legal da atividade administrativa umas vezes é
precisa, outras vezes é imprecisa”.[2]
A
vinculatividade permite à lei vincular a ação administrativa à decisão
final. São estes os casos onde a lei baliza a atuação administrativa de forma
minuciosa, ficando assim regulados, por lei, todos e cada um dos aspetos dentro
do campo de ação da Administração. Esta vê assim o seu livre-arbítrio ser
substituído pelo pré-determinismo da lei. Já a discricionariedade permite à Administração ter descrição para que, dentro das hipóteses dadas pela lei, escolher
como agir. Nestes casos a lei concede que haja espaço para que a atuação
administrativa fique subordinada à veneta da própria Administração. A lei opta
pelo silêncio, concedendo-lhe uma margem de autonomia face às decisões que esta
tem de tomar. No ordenamento jurídico administrativo a discricionariedade passa
assim a ser tida como um corolário de uma certa liberdade de escolha.
Outra questão é a de tentar perceber
porque foi a liberdade de atuação da Administração arquitetada neste sistema dicotômico. À luz do princípio da legalidade não deveriam todos os campos de
ação da Administração estar previamente, e de forma minuciosa, regulados por
lei ?
Em resposta a esta problemática, pode
começar por ser dito que, de um ponto de vista prático e logístico, isso se
revela pura e simplesmente impossível. Há casos de natureza lógica, mecânica e dedutiva,
que permitem ser regulados por lei de forma cirurgicamente detalhada. Mas o
quotidiano jurídico é pródigo na arte do improviso e por isso as ramificações
de casos fisicamente imprevisíveis são infinitas. Sendo estes a maioria de
casos com que a Administração se depara, essa forma de previsão milimétrica
revela-se impraticável. Depois disto, pode ainda ser argumentado que uma
conduta condicionada de forma tão forte, com decisões quase que pré-fabricadas,
pode ser atentatória à necessidade de justiça equitativa no caso concreto.
1.1.
– Divergências doutrinárias
Apesar
de não caber aqui tomar posições pessoais, cabe sim, como exercício intelectual
e acadêmico, examinar aquilo que entre nós é defendido doutrinariamente. No quadro da doutrina portuguesa, há basicamente quatro posições
fundamentais á cerca da distinção entre poder discricionário e poder vinculado.
Primeiramente,
temos uma construção tradicional, clássica, defendida entre nós por Marcello
Caetano. Na sua doutrina, o poder discricionário é um poder à margem da lei e do
princípio da legalidade, o que significa que o poder discricionário não pode
ser jurisdicionalmente controlado. Assim, o ato administrativo é visto e classificado
como discricionário ou vinculado, em função da existência ou não da liberdade de
decisão da Administração. Nesta lógica, o ato é da responsabilidade exclusiva
da administração e não pode ser controlado pelo tribunal, se for um ato
discricionário. Já se for um ato
vinculado, pode estar sujeito a controlo jurisdicional.
Depois desta há
a construção de Freitas do Amaral. Aqui coloca-se em causa a distinção entre
atos vinculados e atos discricionários, dizendo que é preciso catalogar olhando
para os poderes que estão em causa no próprio ato. Como estes podem exercer
simultaneamente poderes vinculados e poderes discricionários, nunca se pode simplesmente
dizer que um ato é totalmente discricionário ou totalmente vinculado. Não
existem atos totalmente vinculados ou totalmente discricionários, devendo estes
ser caracterizados pelo poder que predominantemente os preencher. Como
consequência, os tribunais podem controlar os aspetos vinculados do exercício
dos respetivos poderes, não podendo interferir no domínio dos poderes
discricionários.
No terceiro
posicionamento, temos a opinião que Sérvulo Correia defendeu na sua tese de
doutoramento. Esta doutrina vem acrescentar uma distinção entre duas espécies
de discricionariedade. Há uma margem de livre decisão e uma margem de livre
apreciação, correspondendo precisamente a dois momentos diferentes, sendo que
em ambos a Administração está dotada de liberdade de ação.
Há ainda uma última
posição, correspondendo à do pensamento de Vasco Pereira da Silva. Na sua
perspetiva, a Administração pratica sempre decisões jurídicas que se definem
pela necessidade de concretizar o ordenamento jurídico no caso concreto. Nenhuma
decisão é verdadeiramente livre. Não há diferença entre a margem de livre
decisão e a margem de livre apreciação. A questão que se coloca é exatamente a
mesma, de uma escolha da administração, balizada pelos mesmos critérios,
independentemente do tipo de ato. Defende ainda que a primeira coisa que a
administração vai fazer, colocada perante uma situação que exige um ato administrativo,
é interpretar a norma. E daqui parte uma realidade integrada, sucedida pela
apreciação e depois pela decisão, sendo que todos os três momentos estão
igualmente limitados por aspetos de “discricionariedade vinculada”, segundo a
lei.
2.
– A historicidade da discricionariedade
Nas palavras de Freitas do Amaral,
toda a evolução histórica do conceito de discricionariedade fica marcada “pelo
progresso constante da ideia de subordinação do poder discricionário da
Administração a limites legais, e ao controlo jurisdicional do respeito por
esses limites.”[3] Ainda
sob o advento do Estado de polícia o poder administrativo caracteriza-se por
ser totalmente discricionário. A lei não fundamenta nem limita a sua atuação, não
tem força ou relevância. Passamos para uma segunda fase, onde o poder
administrativo fica totalmente subordinado ao poder arbitrário do Monarca e de
todos aqueles que com ele o exercem. Todo o sistema está orquestrado para agir
de acordo com a vontade soberana do monarca, não existindo sequer controlo
jurisdicional às suas decisões. Para inverter esta situação surge o princípio
da legalidade, como limitação ao poder régio. Em 1850, surge um limite
jurisdicional à autoridade dos atos da Administração dizendo que estes não
podem cair nem em incompetência nem
em excesso de poder. Outro marco a
assinalar é o surgimento do primeiro Código Administrativo, em 1896. Este prima
pela sua inovação em matéria de proteção dos direitos e interesses dos
particulares e pelo seu reforço da vinculação da Administração à lei. Em 1930,
temos o surgimento na noção de desvio de
poder, ainda hoje relevante. Este passa a ser definido como “o exercício de
faculdades discricionárias fora do seu objeto e fim”[4].
Ou seja, passa assim a ser visto como uma ilegalidade o exercício do poder
discricionário para um fim diferente daquele que é o fim legal para que foi
configurado. Daqui, até aos dias de hoje - nas palavras de Freitas do Amaral - o
poder discricionário tem sido “legalizado” e “domesticado”, passando assim a
estar cada vez mais sujeito à fundamento e às limitações da lei, ao controlo
jurisdicional dos tribunais administrativos, sob tutela constitucional.
3.
– A extremidade da discricionariedade
Por mais livre que seja a liberdade de decisão da Administração, nunca
deixará de estar submetida a limites e restrições impostas por todo o bloco de
legalidade do ordenamento. Alguns exemplos já foram acima referidos. A sua
obrigação em respeitar as singularidades do caso concreto; a sua
impossibilidade legal em extrapolar para situações de incompetência, excesso ou
desvio de poder.
Primeiro
que tudo, a atuação administrativa tem de ter sempre fundamento na lei. Só existe
se a lei lhe permitir existir e só existe na forma como a lei configurar a sua
existência. A sua conduta só pode levar ao único fim que o ordenamento permite
atingir, face àquele caso concreto. Parece óbvio que só lhe é permitido fazer
escolhas se a lei lhe atribuir, não só as respetivas hipóteses de decisão, como
o próprio poder de decidir. Aqui o ordenamento admite que das diferentes
escolhas da Administração resultem diferentes resultados. Depois, no plano
material está ainda sujeita a vários princípios, da boa fé, da igualdade, da
proporcionalidade e da imparcialidade – sendo a sua mera menção suficiente uma
vez que já foram abordados aqui em sede. Dar ainda especial destaque ao
princípio da boa administração, e da persecução do interesse público.
A discricionariedade não será tanto uma liberdade
pura, mas antes um poder-dever jurídico. A discricionariedade não equivale a
uma livre escolha entre várias soluções legalmente possíveis. Equivale, antes,
à obrigação de escolher a solução mais acertada. A Administração está sempre
obrigada à busca da solução que seja, não só a mais adequada ao caso concreto,
não só a que respeite sempre a competência e o fim legal, mais ainda a que
melhor satisfaça o interesse público. Sendo que se encontra sempre sujeita a
controlo judicial, de mérito e de legalidade. O poder discricionário não
confere à Administração mais liberdade de ação, confere-lhe sim um mais exigente
grau de responsabilidade e subordinação, face ao ordenamento jurídico.
II
Dito isto, crê-se que já há condições para se passar a uma breve
análise do acórdão 01459/06. Deste já se faz a ressalva de que nesta curta
apreciação não cabe um minucioso aprofundar do mesmo. Esta tem como principal
objetivo ajudar a consolidar este entrosamento do poder discricionário,
sobretudo através da sua transferência para o plano da aplicação prática. E fica
aqui assim, em traços largos, o curto resumo de uma das infinitas problemáticas
que podem ser suscitadas pela aplicação do poder discricionário.
1.
– O Acórdão 01459/06
É da maior
relevância – e praticamente suficiente - para esta análise ver que, na sentença,
o tribunal subscreve à definição de discricionariedade dada por Marcelo Rebelo
de Sousa[5].
O acórdão chega a cita que “pode haver mais do que uma solução administrativa
para prosseguir um certo interesse público concreto – quer quanto ao conteúdo,
quer quanto ao objecto, quer quanto à forma. Ponto é que o legislador tenha
querido atribuir a liberdade de escolha à Administração Pública e que o
exercício dessa liberdade não colida com qualquer outro princípio norteador da
atividade administrativa. Não se nos afigura, por isso, legítimo ao Tribunal
encarregado de controlar a legalidade de um ato de administração ir ao ponto
de definir – nos casos em que a lei quis atribuir discricionariedade – um conteúdo,
um objecto ou uma forma únicos compatíveis com o fim a prosseguir, e, em função
deles, apreciar o ato em questão. Isso representaria admitir que o Tribunal se
pudesse substituir sempre à Administração Pública no traçado de todos os
elementos do ato por ela praticado. O que põe em causa a lei – que quis dar à
Administração Pública uma liberdade de escolha – assim negada.”
A
problemática sobre a qual versa o acórdão enquadra-se na linha do acima
abordado. No caso em apreço, o Tribunal questiona ainda, ao citar Bernardo
Diniz de Ayala[6], “até
onde devem e até onde podem os tribunais controlar a atividade administrativa
para que a Administração possa atuar – dentro dos limites da lei e tendo em
vista a realização de fins de interesse público – de acordo com os seus
próprios critérios ?. Em bom rigor, a regra básica e visto o problema em
abstrato é de fácil formulação: a margem de livre decisão qua tale é
insusceptível de controlo judicial porque respeita ao mérito, à conveniência ou
à oportunidade da administração; pelo contrário, tudo o que se situar fora
dessa esfera é judicialmente sindicável porque estará em causa a validade da
conduta administrativa (e nesse domínio já não há livre decisão mas sim
vinculação)”.
Em duas
palavras, versa o acórdão sobre uma disputa onde é suscita a eventual
ilegalidade do facto de o poder judicial se ter tentado substituir ao poder
administrativo. A situação agrava-se ainda mais, pois ocorre em matéria a que tinha
previamente sido atribuída competência à Administração para decidir. Surge
ainda a questão de saber se, no caso concreto, o controlo da decisão cabe aos
tribunais comuns ou aos tribunais administrativos. O tribunal acaba por
proferir no sentido da ilegalidade e na impossibilidade de a decisão
administrativa ser anulada ou substituída.
Bibliografia
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo,
volume II, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2016
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo, Vol.
I, Lex, 1999
André Pereira
Nº57339
[1]
Expressão em latim que remonta a As
Sátias, do poeta romano Juvenal, na transição do século I para o século II.
Com tradução no sentido de “Quem guarda os guardas ?”, teve posteriormente
várias ramificações jurídicas, principalmente em matéria de Direito
Constitucional
[2] V. AMARAL,
Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª ed., Almedina,
Coimbra, 2016, p. 66
[3] V.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª ed.,
Almedina, Coimbra, 2016, p. 78
[4] V.
Decreto nº18 017, de 28 de fevereiro, 1930
[5] V. Marcelo
Rebelo de Sousa, Lições de Direito
Administrativo, Vol. I, Lex, 1999, págs. 107/108
[6] Bernardo
Diniz de Ayala, O (défice) de controlo judicial da margem de livre decisão
administrativa, Lex, 1995, pág. 83
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