Tuesday, May 1, 2018

PODE UM SURTO DE LEGIONELLA DESENCADEAR UMA AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRA A ADMINISTRAÇÃO?


Assim como se aprende no Direito Civil, a principal função do instituto da responsabilidade civil é ressarcir ou indemnizar os prejuízos que, segundo o curso normal dos acontecimentos, não deviam ter ocorrido. Indemnizar significa eliminar o dano real sofrido, através da reconstituição in natura. Não sendo possível a reconstituição, haverá que proceder à reparação do dano por um sucedâneo ou equivalente pecuniário.

O caso em análise prende-se com uma realidade factual ocorrida em novembro de 2017: a ocorrência de um surto de Legionella proveniente de uma das torres de arrefecimento do Hospital São Francisco Xavier (HSFX), em Lisboa. Assim, importa referir que a Legionella é uma bactéria omnipresente em meio aquático, altamente contagiosa através da inalação de gotículas de água suspensas no ar que a contenham e, de acordo com a Direção-Geral de Saúde (DGS), “pode existir em reservatórios naturais, rios e lagos, em reservatórios artificiais como sistemas de água doméstica, humidificadores, torres de arrefecimento de sistemas de condicionamento de ar, jacuzzis, piscinas, instalações termais […] locais onde se produzam aerossóis com facilidade”. Como consequência deste surto, cerca de 60 pessoas foram infetadas e cinco delas acabaram por falecer.

Uma vez que o Ministério da Saúde se integra na Administração direta do Estado (artigo 3º do Decreto-Lei n.º 124/2011, de 29 de dezembro, a Lei Orgânica do Ministério da Saúde), cabe averiguar se os lesados (os doentes infetados) podem ou não pedir uma indemnização à Administração por todos os danos suportados, quer patrimoniais (despesas com o tratamento), quer não patrimoniais (as dores, o sofrimento), derivados da infeção contraída no HSFX.

Já no âmbito do Direito Administrativo, o princípio da responsabilidade da Administração está previsto no artigo 16º CPA. Por sua vez, o Professor DIOGO FREITAS DO AMARAL define a responsabilidade da Administração como “a obrigação jurídica que recai sobre qualquer pessoa coletiva pública de indemnizar os danos que tiver causado aos particulares, seja no exercício da função administrativa, seja no exercício de atividades de gestão privada”.

Apesar de todas as modalidades de responsabilidades civil a que está sujeita a Administração Pública, este é um caso de responsabilidade civil por atos de gestão privada, uma vez que o Presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando Almeida, afirmou que “deve ter havido uma falha técnica [que originou o surto], não por desinvestimento do hospital, mas alguém falhou. Não me compete dizer qual foi a falha”. Também a Diretora-Geral da Saúde, Graça Freitas seguiu o mesmo tom, dizendo que “aconteceu uma falha na vigilância, monotorização e controlo e, havendo uma empresa responsável, terá de ser investigada noutra sede que não na da saúde pública”.

Servem as presentes transcrições para perceber que o controlo e manutenção das torres de arrefecimento do HSFX estavam a cargo de uma empresa privada, motivo pelo qual esta é uma responsabilidade civil por atos de gestão privada. Apesar do contrato que deve ter sido celebrado entre o Estado e a dita empresa, analisarei esta modalidade de responsabilidade no âmbito extracontratual, uma vez que não tenho acesso ao negócio jurídico bilateral em causa para poder analisar a questão do ponto de vista da responsabilidade civil contratual por atos de gestão privada.

Finda a introdução, começarei, de seguida, a analisar o regime da responsabilidade civil extracontratual da Administração por atos de gestão privada.

Este tema é regulado pelo Direito Civil, mais precisamente nos artigos 500º e 501º do Código Civil. Da conjugação destes dois preceitos resulta que o Estado é solidariamente responsável com os seus órgãos, agentes e representantes, pelos danos por estes causados aos particulares no exercício das suas funções.

Aqui, não seria necessário aos lesados (os doentes que foram infetados com Legionella), provar a existência de culpa da pessoa coletiva; bastava que fossem responsabilizados os indivíduos que agiram ao serviço da pessoa coletiva pública. Neste caso, culpa sob a forma de omissão dos funcionários ou titulares dos órgãos da dita empresa, que não praticaram os atos necessários nem adotaram a diligência adequada à correta manutenção da torre de arrefecimento, provocando o contágio de dezenas de utentes.

Desta forma, a lei parte da responsabilidade dos órgãos, agentes ou representantes para a responsabilidade da Administração, considerando esta solidariamente obrigada à indemnização sempre que aqueles, tendo atuado ao serviço desta, sejam responsáveis nos termos gerais. Efetivamente, a Administração, depois de pagar a indemnização devida ao lesado, goza do direito de regresso contra o autor do facto danoso (a empresa), podendo reaver tudo o que tiver sido pago. A Administração funcionará apenas como garante da obrigação de indemnizar que recai sobre os seus órgãos, agentes ou representantes. A lei estipula esta solidariedade de forma a garantir que os lesados recebem verdadeiramente a indemnização.

Consequentemente, estamos perante uma responsabilidade objetiva da Administração pelos atos dos seus órgãos, agentes ou representantes, que assentará sobre a responsabilidade subjetiva dos autores do facto danoso. Isto significa que a empresa, enquanto pessoa coletiva, que atua ao serviço da Administração, responde pelos danos que causou aos particulares nos mesmos termos em que qualquer particular responde perante outro particular, mas com a particularidade de que a Administração, mediante a via da responsabilidade solidária, garantirá aos lesados o cumprimento do dever de indemnizar a cargo da empresa.

Serve o presente para concluir que, de facto, os lesados poderiam intentar uma ação judicial de responsabilidade civil contra a Administração, mais concretamente exigindo uma indemnização em valor pecuniário.


BIBLIOGRAFIA

DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo – Volume II, 3ª Edição, Almedina, 2016.

JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Administrativo, 11ª Edição, Âncora Editora, 2013.


NOTÍCIAS CONSULTADAS




Beatriz Oliveira
56768

No comments:

Post a Comment